terça-feira, março 21, 2006

GROSELHAS SEMANAIS

Pessoal: daqui por diante, a Turma da Groselha entra em regime de crônica semanal. Quer dizer, crônica da Dóris Fleury... É um compromisso que faço com vocês. Escritor é assim. Só funciona na base da obrigação. No fundo, o sonho de todo escritor é ter um editor malvado ao seu lado, estalando o chicotinho e exigindo produção. Como ainda não encontrei essa personagem dos meus sonhos sadomasoquistas, vocês mesmos vão ter que fazer esse papel. É um compromisso que assumo com vocês: crônica semanal.Eu sei que vocês não fizeram nada pra merecer isso, mas a vida é assim mesmo. Cruel. Schlept! (Esse foi o estalo do chicotinho).Vou estrear essa coluna com um relato de uma experiência literário-masoquista pela qual passei nesse fim-de-semana. Acho que muita gente vai se identificar...

O INFERNO


Dóris Fleury

Foi uma longa jornada até o Inferno. Usamos um veículo anfíbio para enfrentar oceanos de água imunda, pois caía uma chuva torrencial.
Eu poderia dizer que no caminho fomos atacadas por um rato gigantesco de olhos vermelhos, saído do esgoto paulistano. Ou por um crocodilo que, quando filhote, caiu na calha do Tietê; e que, agora, já crescido, e perturbado pelas obras do Alckmin, emergiu em terra firme para nos devorar. Mas nada disso aconteceu, pois coisa pior nos aguardava: o Demônio da Fila.
O Demônio da Fila começou a nos atormentar já antes de entrarmos no Inferno. Uma imensa Fila do Estacionamento se estendia na rua. Dentro dos carros, infelizes condenados aguardavam até quarenta minutos para entrarem. Diabretes da CET, vestidos de amarelo, postados em frente a cavaletes listrados, orientavam a fila. Dentro dos carros, famílias suportavam, resignadas, a fome, a sede, e os gritos das crianças que queriam ir ao McDonald's ou fazer pipi. A extorsiva taxa de estacionamento, se reunida, proporcionaria bolsas para escritores pobres renovarem a literatura brasileira por várias décadas.
Ao saírem do carro, os visitantes do Inferno andavam longas extensões sob a chuva incessante, até chegarem à interminável Fila da Bilheteria. Só escapavam dela alguns pecadores graduados, de crachá pendurado no pescoço. Esses entravam sem passar pelo suplício, provando que até no Inferno existem desigualdade e privilégios.
Já nervosas e mentalmente afetadas, as vítimas da Fila da Bilheteria entravam no círculo infernal - um galpão imenso, repleto de estandes de editoras.
Como todo inferno, este era quente. Muito quente. Os responsáveis alegavam que havia ar condicionado. Mentira. O diabo e seus asseclas, como todos sabem, são antes de mais nada insignes mentirosos.
Dentro do recinto, o espetáculo era dantesco. Famílias inteiras de supliciados vagavam sem rumo, puxando os filhos pequenos que choravam e reclamavam. A aglomeração era tão intensa, que era difícil andar. O Demônio da Fila reinava soberano. Havia a Fila do Banheiro. A Fila do Autógrafo do Escritor Famoso, que até senha tinha. E para aqueles que insistiam em adquirir cultura - miragem com a qual os demônios atraíam os pecadores para aquele torturante evento - havia a Fila do Caixa. Os preços eram medonhos; pareciam destinados a conservar a população paulistana no analfabetismo funcional. Mentirosos pérfidos, os demônios organizadores tinham anunciado descontos. Estes, entretanto, só valiam para aqueles livros encalhados que ninguém quer ler.
Ironicamente, alguns dos maiores estandes daquele mercado infernal eram ocupados pelo mais sinistro dos proselitismos - o religioso. Espíritas, evangélicos, católicos - todos se empenhavam em vender livros para a salvação da alma.
Mas como salvar almas que já estão no Inferno?
Eu e minha amiga avançamos, já exaustas, em direção ao estande onde um escriba amigo autografava seu último esforço literário. Estávamos atrasadas. O lançamento era um sucesso, e tivemos que enfrentar uma Fila de Autógrafos.
Nosso amigo, pálido e cansado, provavelmente com a mão dolorida, nos recebeu com gentileza exemplar. Imaginem os suplícios que o pobre homem devia estar enfrentando. Mas ele é um artista, e todos os sacrifícios são válidos pela criação literária.
Vagamos mais um pouco ali, melancólicas. Estávamos com fome, e comemos um sanduíche integral de atum sem atum, um cachorro-quente que mais parecia de pequinês, batatas fritas mornas e refrigerante na mesma temperatura. Por todas essas iguarias, também tivemos que pagar preços ultrajantes, depois de ficarmos horas... na Fila da Lanchonete.
Ao ver aquela multidão, é inevitável que fizéssemos a pergunta: para quê tudo isso, meu Deus? Qual é a lógica que empurra milhares de pessoas, num fim-de-semana chuvoso, para um circo desses, onde é impossível ter um encontro, mesmo que rápido, com o produto principal? Pois o livro - como sabem todos que gostam de ler - exige silêncio, recolhimento, atenção. Uma livraria silenciosa e vazia, um vendedor compreensivo que não nos assedie, uma longa apreciação, um remexer tranqüilo nas estantes... Como fazer esse encontro, naquele lugar que mais parecia uma mistura de Auschwitz com o saldão de legumes do meu bairro?
Fizemos mais algumas tentativas de apreciar os livros, olhá-los com calma e cuidado, comparar preços com ponderação. Queríamos fazer uma compra que nos deixasse felizes e orgulhosas de nossas sacolinhas, ao voltarmos para casa. Foi impossível. O calor aumentava, a quantidade de gente também. A sede (suplício costumeiro no inferno) nos atacou, e para aplacá-la tivemos que passar mais um tempo na Fila da Água de Coco.
Foi então que desistimos. Juntamos as nossas coisas e zarpamos, exaustas, descontentes e com os pés doloridos, da 19o Bienal do Livro de São Paulo.