terça-feira, junho 13, 2006

BOA VIZINHANÇA


Dóris Fleury

Na vida, muitas vezes, o essencial é perceber as diferenças. Não confundir os bagulhos. Ou, como diria o grande filósofo Tim Maia: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa! Entenderam?
Por exemplo, vocês sabem a diferença entre um Problema Muito Chato e uma Situação Horrorosa?
Vou contar pra vocês.
Um Problema Muito Chato é o que aconteceu com aquele cidadão que finalmente, depois de anos de trabalho, conseguiu comprar o apartamento dos seus sonhos. Sabe aqueles prédios meio antigões, de pé direito alto, cômodos espaçosos, ventilado e iluminado nos padrões adequados para um ser humano? Pois é. Esse sujeito conseguiu comprar um desses, em bom estado. Fez uma reforma completa e deixou o apartamento nos trinques. Quando estava tudo pronto, reformado e decorado, mudou de armas e bagagens pro seu apê.
Na primeira noite, ficou curtindo a nova residência, ouvindo música no seu aparelho de som e tomando um reconfortante uisquinho. Depois disso, feliz da vida, tomou um banho e foi para cama. Sozinho, pois era solteiro.
Dormiu até as três da manhã. Pelo menos foi essa a hora que viu nos números luminosos do relógio digital ao seu lado, quando despertou. Tinha sido acordado por um ruído muito estranho, que vinha do andar de cima. Um ruído de cadeiras arrastadas.
Três horas da manhã! Devia alguém chegando da balada, ou um insone crônico, sem nada para fazer... Não era exatamente um ruído ensurdecedor. Mas também não dava pra dormir com ele. E outra – continuou assim até as quatro da manhã, mais ou menos. E depois que parou, é claro que o pobre sujeito não conseguiu mais pegar no sono.
Imaginou que fosse algo ocasional... Mas no dia seguinte a performance se repetiu, no mesmo horário. Nosso herói era uma pessoa muito educada, e só na terceira noite se aventurou a dar umas pancadas no teto, para ver se o barulhento parava com a dança das cadeiras. E o sujeito parou... por exatamente dez segundos.
É claro que o próximo passo foi reclamar pessoalmente no apartamento de cima. Foi atendido por um cidadão muito mal-humorado, mas completamente vestido e acordado, que disse que não estava arrastando cadeira nenhuma.
- Mas o barulho vem do seu apartamento!
- O senhor está enganado.
Não estava, claro. Nos próximos meses, o novo proprietário levou vários amigos, e o próprio zelador do prédio, para testemunharem a performance das cadeiras. Às três da manhã. Todos concordaram que o barulho vinha do andar de cima, e exatamente do apartamento do sujeito mal-humorado. Não havia dúvida disso.
O condomínio se mobilizou. Cartas foram enviadas ao barulhento. Houve brigas feias entre o novo proprietário e o arrastador de cadeiras, que continuava afirmando que não arrastava coisa nenhuma, ainda mais naquele horário (mas estava sempre acordado àquela hora, quando o vizinho vinha reclamar). O barulhento também era proprietário. Impossível expulsá-lo dali. O Psiu da Prefeitura afirmou que não tinha nada a ver com o assunto. E o nosso amigo, enquanto isso, perdia noites de sono, não apenas pelo barulho, mas também pela raiva que passava!
Finalmente, resolveu botar a mão no bolso e gastar uma grana para resolver o problema. Faria um isolamento acústico de última geração e pronto, se livraria daquela tortura! Era uma solução covarde, mas fazer o quê?
Isolamento instalado, a tortura continuou. A firma responsável mandou um engenheiro, que apareceu no horário fatídico das três da manhã, ouviu as cadeiradas, coçou a cabeça e diagnosticou.
- É, não adiantou mesmo. Sabe por quê? O barulho vem pelos canos...
O homem estava desesperado. A falta de sono estava acabando com ele, vivia caindo aos pedaços, já levara até bronca do chefe. Dormia na sala, todo encolhido no sofá, mas até ali tinha a impressão de ouvir as malditas cadeiras. A vizinhança simpatizava com o seu sofrimento, mas nada podia fazer. Um dia uma velhinha lhe sussurrou no corredor.
- O senhor sabe de uma coisa? Já ouvi uns boatos de que esse sujeito do apartamento aí de cima – baixou a voz – é metido com tráfico de drogas!
- Tráfico de drogas? – disse ele, chocado. Mas depois, ao voltar para casa, refletiu – e daí? Se o vizinho fosse traficante, isso não explicava sua estranha mania de arrastar cadeiras às três da matina. Traficante ou não traficante, o sujeito o estava levando à loucura.

E até aí, se vocês me entendem, estava configurado um Problema Muito Chato.

Duas semanas depois, o vizinho de cima foi encontrado morto em seu apartamento. Escapamento de gás. Suicídio, aparentemente – e todos comentaram na vizinhança que o rapaz era muito esquisito. Parece que andava metido com o crime organizado...
Quanto ao nosso herói, assistiu à toda movimentação – bombeiros, polícia, vizinhos horrorizados – com um ar compungido. No fundo, estava dando pulos de alegria. Só ele sabia o quanto fora difícil roubar uma chave do sujeito, entrar em seu apartamento e abrir discretamente o registro de gás. Tudo isso às duas da matina, logo antes do rapaz chegar. Se o cheiro ficasse muito forte, ele perceberia.
Não gostava da solução, mas não tivera outro remédio... O vizinho fizera por merecer.
Naquela noite, pela primeira vez, teria um sono tranqüilo e ininterrupto até o nascer do dia.
Comeu um ótimo jantar, tomou banho, fez a barba e meteu-se num pijama novo, especialmente comprado para a ocasião. Adormeceu, feliz como um bebê.
E acordou, às três da manhã, com o mesmo barulho habitual das cadeiras arrastando.
Só que, dessa vez, eram duas.

E aí, caros leitores, ficou configurada a Situação Horrorosa.