terça-feira, janeiro 16, 2007

O ABISMO DE TODOS NÓS












Dóris Fleury


Foi na tarde da sexta-feira que comecei a ouvir frases assim:
- Então, o buraco...
- Me atrasei por causa do buraco.
- Quero ver como fica o trânsito depois desse buraco.
Mas que história era essa, afinal?
- Não ouviu falar? Abriu uma cratera enorme nas obras do metrô, ali na Marginal Pinheiros. Foi um desabamento...
Morreu gente?
- Ainda não sabem com certeza, mas parece que sim.

E assim começa o ano para os paulistanos: caindo no buraco. Fiquei imaginando a cena, o susto dos coitados que deram o azar de estar passando por ali naquele momento. A terra se abriu debaixo dos seus pés, literalmente. Feito cena de filme-catástrofe dos anos 70.
Só que, nesse filme, não tem final feliz.
Na superfície, ficamos nós, os felizardos que não estavam passando por ali. Espiamos nervosamente o buraco, como se ele também fosse nos tragar no momento seguinte. Sintonizamos a rádio, visitamos os sites noticiosos, ansiosos pelas últimas notícias do buraco. A grua enorme, encostada na beira da cratera, nos dá vertigens: e se ela cair de repente? Todo mundo pensa: podia ser comigo. (Podia ser com a minha filha, que estudou durante anos num colégio ali na Rua Capri).
Mas de quem é a culpa? O governo olha pra empreiteira e ela sacode a cabeça, assobia, finge que não é com ela. Nós olhamos pro governo, ele ajeita a gravata e promete rigorosa apuração.
E enquanto isso o verão continua. Desço a Imigrantes no fim-de-semana, chego na praia e assim que boto o pé na casa do meu irmão, vem a pergunta de todos:
- E o buraco, hein?
(E por falar em buraco: uns idiotinhas andaram destruindo a lagoa natural de uma das extremidades da Juréia, para fazer pororoca artificial e surfar ali. Morreu um monte de peixes. Declaração de um dos surfistas: "Fiz isso porque sou homem e isso é areia. Não foi crime ambiental". Nesse caso, quem caiu no buraco foram os peixes.)

Volto para São Paulo e o assunto continua sendo o buraco. É como se, depois das festas, do Natal, do Ano Novo, caíssemos na realidade. Ou seja, no buraco. Uma enorme cratera foi aberta por um consórcio de empreiteiras que não conhecemos, operando com critérios dos quais nem o governo tem idéia. Alguns cidadãos pagaram o erro com a vida. E o pior é que não dá pra dizer, tapem o buraco, enterrem os mortos e fica tudo por isso mesmo. Se existe alguma salvação para a cidade de São Paulo, ela está nos túneis do metrô - esse serviço abençoado que poupa gasolina, evita congestionamentos e impede que a cidade pare de vez. Desde a década de 70, começando na gestão Maluf, todos os governos estaduais e municipais deviam ser processados por construírem pouco ou nenhum metrô.
Metrô é urgente. Segurança nacional. Mas nada disso justifica o que aconteceu.
Sai a foto da primeira vítima encontrada. Coitada da Dona Abigail Azevedo. Cara de vó da gente. Ia ao médico. Mas aí, a terra se abriu...
E o pessoal da van que estava passando ali? Continuam procurando. Será que sobreviveram? Como esperança é a última que morre, os parentes, em volta do buracão, aguardam ansiosamente as notícias.
Faz calor. Chove. Incrível como está chovendo nesse verão. Terá sido isso que provocou o desabamento? Não, respondem os especialistas, a chuva era previsível nessa época do ano. Ofendidas com a suspeita de que possam ter algo a ver com um desabamento numa obra que estavam tocando, as empreiteiras reclamam, usando como porta-voz um âncora da Globo. Em off, claro. Se sentem injustiçadas.
Identificada a segunda vítima. Valéria Alves Marmit, uma advogada de 37 anos, que estava passando no local. Mãe de três filhos.
Ainda tem a van pra localizar. Completa, com passageiro, cobrador e motorista.
E a pergunta que não quer calar: haverá sobreviventes? Alguém lembra que, em casos parecidos, muita gente já foi encontrada viva, depois de até cinco dias soterrada. Basta ter um pouco de ar pra respirar... O governador, mais realista, avisa pra não alimentar falsas esperanças. A tevê transmite ao vivo do local, sem parar. Entrevista com as famílias. Entrevista com os engenheiros. Entrevista, digo, matéria com as cadelas farejadoras que trabalham no local. Entrevista com os coitados que tiveram de ser desalojados de suas casas, com risco de desabar. Em alguns casos perderam tudo mesmo, não puderam retirar nada. Indenização? O certo seria pagar já, agora, nesse exato instante. Mas a história de casos parecidos, aqui no Brasil, não é muito promissora.
Em meio a tanta confusão, já se avisa que as obras não serão suspensas. Logo vão localizar as outras vítimas. O Corpo de Bombeiros é competente. Até as cachorras deles me parecem competentes. Mas não sei não. Por trás de todo esse auê, de todo esse barulho e sensacionalismo por causa de um acidente muito menos mortífero que qualquer deslizamento em favela, existe algo estranho. Por um motivo metafísico que me escapa, todos nós, paulistanos, gostaríamos de ir até lá e olhar o fundo da cratera. Talvez para meditar sobre a finitude das coisas. Talvez para suspirar pelo dia, sempre distante, em que teremos uma nova linha de metrô. Talvez para homenagear os que perderam a vida ali. Ou talvez, simplesmente, para contemplar o buraco.
Feito isso, voltaríamos todos às nossas casas. O buraco seria tampado, e 2007 poderia começar.