terça-feira, março 28, 2006

MULHER LEVANTA CEDO

Dóris Fleury

Sete horas da manhã. Numa caverna do Afeganistão, uma das numerosas mulheres do Osama Bin-Laden está pensando no que fazer pro almoço do marido. Churrasquinho de bode, de novo? Ele já reclamou...
Sete horas da manhã. Lá em Washington, as gêmeas Bush estão bolando um jeito de furar a vigilância do papai e ir tomar umas brejas com as amigas hoje à noite.
A essa hora, a deputada Angela Guadagnin também já está de pé, a caminho da sua aula de dança.
E a Hillary Clinton está prosseguindo no seu plano para dominar o mundo. De verdade.
E tem uma política lá na França, muito bonita por sinal, que é favorita nas eleições presidenciais. Segolène não-sei-do-quê. Daqui um tempinho pode estar governando o carro-chefe da União Européia. E a essa altura a Segolène já está comendo seu croissant matinal, e sonhando com o poder.
Às sete da matina, as mulheres já acordaram na periferia. Acordaram e foram trabalhar, ou levar o filho, que criam sozinhas, pra fila do atendimento no SUS. Rezando pro moleque sarar, crescer, estudar, arranjar um emprego e não ir parar no tráfico. E é tudo por conta dela.
Sete horas da manhã. A velhinha da esquina já foi passear com seu cachorro. O cachorro também está velho. Mas os dois pulam cedo da cama para dar uma volta. Devagar e sempre.
Às sete da manhã, com certeza alguma mulher que ontem levou um pé na bunda fenomenal já levantou. Olho inchado. Cabeça pesada. Vontade de morrer. Vai passar o dia todo segurando o choro na frente dos colegas de escritório. Mas ainda assim levanta.
As academias já estão abrindo pras fanáticas da malhação, em sua busca incansável pelo corpo perfeito.
E se alguma mãe de primeira viagem estiver dormindo a essa hora, é bom aproveitar, porque logo o bebê chora.
Sete da manhã. Os pontos de ônibus já estão cheios de mulheres que vão trabalhar. Não importa o emprego. Pode ser o mais humilde, o mais mal-pago do mundo. Faxineira, empregada doméstica. Elas estão sempre cheirosas e bem-arrumadas, com um batonzinho nos lábios. Porque mulher sem batom e roupinha bonita é como um guerreiro sem armas.
E depois de anos escondendo o leite, a Danuza Leão assumiu a idade em público. Danuza, não sei se você já acordou, mas está de parabéns: aos 72 anos, finalmente virou adulta!
Sete da manhã. A essa altura minha mãe, que tem a idade da Danuza, já está na piscina nadando seus dois quilômetros diários.
Sete em ponto. As mulheres mais invejadas do mundo também já estão de pé. Sim! Modelo precisa acordar cedo para sessões de fotos, vocês não sabiam? Lindas e maravilhosas. E com o estômago roncando.
Também é nessa hora que acordam aqueles seres tão especiais, as grávidas. Acordam morrendo de sono e fome, e fazendo esforços heróicos para levantar da cama. Sim, porque dependendo da altura da gravidez, a mulher, essa maravilha da biologia, se torna um besouro. Já viu besouro caído de barriga pra cima, tentando se virar? Pois é.
E também às sete da manhã as organizadoras da Parada Gay já devem estar acordadas, pensando na próxima edição do evento. Toda força, meninas.
Às sete da manhã eu tenho certeza que já tem outra escritora abnegada martelando seu teclado. Mesmo que seja cedo, estamos atrasadas. Faz pouco tempo que a mulher começou a contar o mundo sob sua perspectiva. Há muito o que escrever. Os escritores homens que fiquem se queixando de falta de assunto, fim da literatura, essas baboseiras. Nós temos mais o que fazer.
Sim, tenho certeza que à essa hora já tem outra escritora trabalhando. E não pensem que isso me deixa contente. Odeio concorrência.

Meu falecido Tio Alfredo adorava contar papo sobre suas aventuras no Mato Grosso. Dizia que laçava touros bravos, enfrentava bandidos armados, essas coisas. Um herói, o Tio Alfredo: destemido, incapaz de sentir medo. Que Deus o tenha. Pra falar a verdade, ele era um chato com aquelas conversinhas. Tão chato que um dia minha irmã estrilou com ele:
- Sabe de uma coisa, tio? Eu não acho que essa história de laçar boi no pasto seja coragem. Coragem mesmo é sair da cama todo dia e ir trabalhar, cuidar de filho e cumprir sua obrigação. Mesmo que a coisa esteja preta.
Pois é. Concordo com ela: isso sim que é coragem. E dessa, nós, as mulheres, temos pra dar e vender.