terça-feira, dezembro 05, 2006

MEUS MONSTROS PREDILETOS

Dóris Fleury

Todo mundo adora passar medo. Todo mundo! O sujeito pode levar um vidão, ter grana, namorada, carro bacana, um bom emprego... e mesmo assim paga pra sofrer duas horas no escuro, encolhidinho na poltrona, assistindo filme de terror. E quem não gosta de filme de terror adora os livros do Stephen King. E quem não curte Stephen King coleciona lendas rurais ou urbanas, contadas em volta da fogueira ou espalhadas feito vírus na Internet.
Ou seja, por maior que seja o progresso científico e tecnológico, o alcance da educação etc, a humanidade nunca vai desistir de um bom susto.
Como não tenho a pretensão de estar fora da humanidade, vou expor aqui uma lista de monstros, aparições e correlatos com os quais sempre convivi, em ordem crescente de medo. Vejamos.

- Lobisomens - Realmente não fazem minha cabeça. Que medo você pode ter de uma criatura que é, basicamente, um cachorrão? Joga um ossinho pra ele, pronto. Só cuidado com as pulgas...
Ah, e outra: nunca gostei de homem peludo.

- Maníaco Assassino - Que eu e minha filha apelidamos de MA. "Mãe, botaí um filme de MA pra gente rir", ela diz . Porque só rindo mesmo. Os MAs hoje em dia não dão medo nem em criancinha. Eles atacam sempre do mesmo jeito, com as mesmas facas deeeesse tamanho e nos mesmos momentos. Antes de começar o filme americano de MA, você já sabe quem vai morrer! (Os personagens que fazem sexo). Não tem a menor graça. MAs são bobos.

- O homem do saco - Personagem da infância de todo mundo, e também da minha. Mas só a bobona da minha irmã é quem tinha medo. Eu logo saquei que o velhinho era inofensivo.

- Bicho-papão - Agora eu já perdi o medo... Mas até os oito anos, estava convicta que ele morava debaixo da minha cama. Eu dormia com os pés bem encolhidos, pro bicho-papão não puxar! Inclusive ele é um monstro interessante porque não tem design. Você pode imaginá-lo do jeito que quiser, não é criativo? Eu via ele enorme, redondo, cheio de pêlos cinzentos, sem olhos... Se movia na escuridão. Quando eu perdia o sono ficava de olho aberto no escuro, morrendo de medo, acompanhando os movimentos do papão!

- Morto-vivo - Acreditem se quiser, eu tenho um amigo que está com mais de quarenta anos e tem medo de morto-vivo. Ele é fã do George Romero e acha que aquele filme foi baseado em fatos reais.
Eu até tenho um medinho, mas só se a maquiagem for muito bem feita.

- Vampiro - Um caso complicado de superexposição, como diriam os publicitários. Até uns vinte anos atrás, nada como um bom vampiro pra fazer o público tremer. Mesmo que fosse daqueles bem trash dos quadrinhos. Aí começou a festa da uva: vampiro no cinema, vampiro na televisão, vampiro nos livros da Anne Rice... Essa senhora aliás acabou com o vampiro, foi uma judiação. O vampiro dos livros dela é uma antipatia total. Um ser todo-poderoso, forte, bonito, inteligentíssimo, para o qual os humanos são meros fornecedores de pescoços. Um mala! Aí foi pro cinema; desastre total. Quem vai acreditar que o Tom Cruise e o Brad Pitt, tão bonitinhos! sejam vampiros? Não dava. Ms. Rice deveria ser processada pela Associação dos Apreciadores de Vampiros.
Claro que, de repente, um escritor ou diretor de cinema criativo ainda pode recuperar a imagem dos pobres bebedores de sangue, e construir uma história original, que provoque arrepios. Eu tenho minhas dúvidas... A essa altura, o vampiro, pra mim, já é metáfora do capitalismo globalizado. Neguinho te suga o sangue e você ainda tem que gostar.

- Fantasmas - E por falar em metáforas. Fantasma nunca sai nunca da moda, porque é uma metáfora poderosa. Ele é a expressão do desejo humano de se comunicar com os mortos. Claro que é bom evitar os clichês, mas ainda tem muita gente que consegue dar um sustões com fantasma! Vocês viram Os Outros, com a Nicole Kidman? Se não viram, aluguem urgentemente o DVD. Recomendo também a última safra de fantasmas japoneses. Gente, é de engasgar com o sushi!
Fantasma em geral evita a superexposição que vitimou o vampiro. Demora horas para aparecer, e antes se manifesta como uma porta batendo, um sussurro na madrugada, um objeto que cai, um porta-retratos estilhaçado... Brrr! Já sentiram o arrepio? Na melhor história de fantasma que já li, Outra volta do parafuso, os fantasmas só aparecem uma vez! O resto é clima. Nossa, eu adoro um fantasma!

- A loira da gilete - No capítulo lenda urbana, essa era a melhor. Corria na década de 70, acho que depois teve uma versão atualizada na década de 80, então muita gente ainda deve lembrar. Era uma loira belíssima, que estrelava um comercial de gilete na TV. Aí tinha uma história de que ela tinha se suicidado e assombrava os banheiros das escolas, onde aparecia... como é que era mesmo? acho que com uma bandagem no pescoço, um troço assim. (Ou seria algodão?) Eu sei que parece uma baboseira inacreditável, mas a coisa pegou tanto, na época, que no meu colégio já tinha neguinho se recusando a ir sozinho ao banheiro. E até hoje, pra falar a verdade, essa história me deixa com arrepio. Duplo brrr!
Ah, também gosto do cara que acordou na banheira cheia de gelo sem rim! (ou era fígado, hein?).

- Zé do Caixão - Morro de medo até hoje. Ele tinha um programa na TV, que minha mãe não me deixava assistir; só de ver a chamada eu já fazia xixi nas calças. Aliás, encontrei ele pessoalmente no lançamento de Necrópole - Histórias de Fantasmas.É um velhinho encantador, mas por via das dúvidas não cheguei muito perto.

Bom, essa é a minha lista pessoal. Mas cada um tem a sua, né? E enquanto a gente fica com medo de vampiros, fantasmas e lobisomens, não pensa no George Bush nem no aquecimento global. De modo que de certa forma os monstros têm sua utilidade. E uma vida sem monstro, de forma geral, não teria muita graça.

terça-feira, novembro 28, 2006

AINDA ESTOU AQUI

Dóris Fleury

O tempo voa quando a gente se diverte...
Parece que foi ontem. Eu fiz minhas malas. Me despedi dos amigos. Minha mãe me encheu de conselhos, e terminou com essa sutil advertência: “E não fique andando por aí com essa cara de distraída, que acaba sendo assaltada!”.
Conhecendo meu nível de alheamento ao mundo, ela e meu pai estavam convencidos que, na grande cidade, eu seria assaltada, atropelada, raptada... ou no mínimo perderia o endereço de casa, e nunca mais voltaria.
Nada disso aconteceu comigo. Sobrevivi.
Parece mesmo que foi ontem: a primeira coisa que estranhei foi o frio. Naquela época era pior do que hoje. Vinda do calor do Noroeste de São Paulo, eu odiei os invernos.
No começo, só aprendi um caminho: entre minha casa e a faculdade. Saindo desse circuito, me perdia, e tinha que ser guiada pelos amigos que, felizmente, não demorei a fazer. E se não houvesse amigo por perto, sempre podia recorrer, como diria a outra, à bondade de estranhos.
Eu estranhava tudo. Andava na Avenida Paulista boquiaberta, deslumbrada pelos edifícios imensos, bem caipira mesmo. Na minha cidade não tinha disso. Na minha cidade também não tinha mendigo, favela, criança pedindo esmola em sinal (hoje tem tudo isso, o progresso já chegou lá...).
Isso eu também estranhava. Estranho até hoje.
Experimentei a fascinante experiência de sumir da multidão. Vagando pelas ruas da grande cidade, adquiri um vício do qual nunca me livrei: olhar as pessoas, observá-las, contemplar as milhares de caras da metrópole. Ouvir seus sotaques diversos: o cantado nordestino, o italianado da Zona Leste, os erres caipiras dos quais, naquela época, eu tentava me livrar. (Nunca consegui. Hoje tenho orgulho deles).
As janelas iluminadas, à noite, me fascinavam. Quem moraria naqueles lugares? O que pensariam? Como levariam a vida?
E eu imaginava mil coisas sobre aquelas pessoas.
Morei no Paraíso, morei na Cidade Universitária, morei em Pinheiros por um tempão. Quinta-feira tinha aula à noite, e me lembro até hoje da sensação de descer a Rebouças de ônibus, vendo lá no fim da avenida as luzes do Jóquei Clube. Eu me sentia no centro do mundo.
Nunca tive medo de andar em São Paulo: olho pros lados, saco o ambiente e vou em frente. Precisando, me viro. Já chutei trombadinha pra fora do ônibus.
Também nunca aderi à paranóia da segurança: moro em casa, com dois cachorros totalmente bobões. Trânsito? Pra mim não é problema. Detesto andar de carro, prefiro o metrô.
Não saio daqui nem por decreto. Mais paulistana do que qualquer nativo, não abro mão de nenhum dos programas típicos da cidade. Aproveito todos, dos bem trash (fazer compras na 25 de Março), passando pelos ecológicos (ir com a família ao Ibirapuera), consumistas (passear no shopping, caipira adora shopping) culturosos (enfiar o nariz numa livraria, de preferência a Cultura) ou simplesmente boêmios (bares da Vila Madalena).
Quase todas as minhas histórias se passam em São Paulo. Nunca perdi o estranhamento, estou sempre me espantando com essa cidade. É grande, é louca, é perigosa. Mas também é um lugar onde dá pra sonhar com tudo, fazer qualquer projeto; e sempre se arranja uns malucos que embarcam na história com você.
Por exemplo: um amigo meu, o Richard Diegues, resolveu montar uma coletânea só com textos sobre São Paulo. Chamou cinqüenta escritores, inclusive eu. O resultado foi o Visões de São Paulo, que será lançado no próximo sábado, dia 2 de dezembro, às 19 horas, em coquetel na Casa das Rosas, número 37 da Avenida Paulista. Endereço mais paulistano, impossível.
Vale a pena ir e comprar o livro. E sabem por quê? Porque ele é bom, tem cinqüenta ótimos textos. E também porque São Paulo deixa as pessoas boquiabertas, com sua grandeza, sua generosidade, suas loucuras, suas misérias. Estou aqui há vinte e sete anos aqui e ainda não parei de me espantar.
E aliás, gostaria de aproveitar a oportunidade pra mandar um recado pra minha mãe.
Mamãe, escapei do atropelamento. Mamãe, assaltada mesmo mesmo ainda não fui. E ninguém se interessou em me raptar, não sei porquê...
Mas não volto mais pra casa, mamãe. Não volto nunca mais.
Minha casa agora é aqui.

P.S. - Além desse lançamento coletivo, no dia 14 de dezembro estarei participando de um individual: o lançamento do meu livro de contos "A Maldição das Cadeiras de Plástico", pelo selo Além da Letra. O cenário também é SP. Aguardem.

terça-feira, novembro 21, 2006

MUNDO ANIMAL

Dóris Fleury

Hoje foi dia de levar meus animais para serem lavados, penteados e enfeitados na pet shop.
Trata-se de uma operação relativamente simples, que passo a explicar para vocês:
Primeiro, eu subrepticiamente escondo a guia dos meus dois cachorros dentro da bolsa. Isso tem que ser feito às escondidas, pois minha casa é toda envidraçada e lá do quintal os dóguis podem ver que a guia entrou em ação. Caso isso aconteça eles surtam, entram em estado de agitação maníaca, latem feito uns desesperados, pulam em você, e caso você seja um dono do sexo masculino (o que felizmente não é o meu caso) são capazes de atingir certa área muito importante e delicada do seu corpo, e deixá-lo rolando de dor no chão durante vários minutos. Já aconteceu, acreditem.
Depois de esconder a guia dos cachorros, eu me aproximo com ar inocente da gata, que está muito tranqüila cochilando em cima da tábua de passar roupa. Isso acontece porque hoje de manhã ela já derrubou um vaso de flores, um cesto de lixo e o MP3 da dona. Sempre que as coisas estão chatas e monótonas, ela começa a derrubar tudo que vê pela frente. É assim que combate o tédio.
Continuando, me aproximo com ar inocente da gata e a enfio dentro da gaiola para transporte, onde ela passa a miar como se alguém a estivesse estripando.
Saio pro quintal e os cachorros me seguem com a sua agitação habitual, ou seja, apenas latindo de língua de fora e fazendo um ar muito ocupado e importante. Chego na garagem, abro a porta do carro e grito de repente: PASSEIO DE CARRO!!! Eles então se precipitam feito dois foguetes desgovernados para dentro do veículo, e lá dentro começam a pular nos bancos, latir um para o outro, e espalhar pêlos pra tudo quanto é lado. De forma que sempre que dou carona pra alguém, esse alguém, depois de entrar no carro e limpar vários pelinhos da sua roupa, invariavelmente pergunta: “Você tem cachorro, né?”
Pronto! A parte mais difícil já acabou. Agora é só subir de volta para a casa, pegar a gaiola e trancar a casa. A gata enquanto isso continua miando toda aflita. Como o carro já tem toda quantidade de entropia que um ser humano é capaz de suportar, coloco a gaiola dela no porta-malas.
Com todos os caninos e felinos trancafiados, abro a porta da garagem, tiro o carro, dou a partida e me dirijo à pet shop. Enquanto isso o Zé e a Rita (cachorros) latem tão alto e com tanto entusiasmo que mal consigo ouvir meus pensamentos. E a Lucy (gata) para não ficar atrás, mesmo de dentro do porta-malas ainda consegue empestear o carro com seus puns.
Isso sempre acontece quando ela fica nervosa.
Nunca entendi porque meus cachorros latem tanto na rua. Para os ônibus? Para as motos? Essas duas coisas parecem agitá-los bastante; mas mesmo que não haja ônibus nem motos, eles continuam latindo com toda a força dos seus pulmões. O Zé eu ainda consigo subornar abrindo a janela do carro. Ele então cala a boca e fica lá, feliz da vida: um cachorro branco com uma tremenda cara de vira-lata e ar abobalhado, babando com a boca aberta e contemplando a paisagem. Não é de admirar que as pessoas dêem risada. Sou um espetáculo público.
Mas pelo menos ele ficou quieto. Já a Rita continua latindo feito uma louca.
Oba, finalmente me aproximo da pet shop. E tem uma vaga para estacionar, a apenas dois quarteirões! Que sorte!
Assim que eu abro a porta os dois cães se precipitam para fora, e é um verdadeiro milagre que eu consiga agarrar as guias a tempo de salvá-los do atropelamento. Aí, tenho de pegar a Lucy no porta-malas – ela está furiosa, miando naquele tom que os gatos usam quando realmente esgotaram toda sua paciência.
Acabou? Não! Segurando as guias dos cães numa mão e a gaiola na outra, eu ainda tenho que pegar minha bolsa, pois não se deixa bolsa dando sopa dentro do carro numa cidade como São Paulo.
A caminhada de dois quarteirões até a pet shop eu deixo por conta da imaginação de vocês. Basta dizer que, quando chego lá, estou enrolada nas duas guias e cada cachorro quer ir numa direção diferente.
Na porta da pet shop tem um banquinho. Sentada nesse banquinho, sempre fica uma tchurma de cidadãos da terceira idade da Vila Madalena, devidamente adornados de bonezinho e camisa xadrez. Depois de uma honesta vida de trabalho, esses senhores se aposentaram e agora têm todo tempo livre para tirar o sarro dos pobres donos de animais que chegam àquele estabelecimento, esbaforidos, suando e tentando controlar seu rebanho canino.
Que beleza. Espero que em breve chegue a minha vez de me dedicar a tão divertido passatempo.
Toco a campainha e ninguém aparece, então não faço por menos: vou entrando (o portão está aberto) e depositando meus adoráveis animais: os cachorros presos pela guia em ganchos de parede, e a caixa da gata num cantinho qualquer. Já avisei por telefone que estavam chegando. Agora, os responsáveis que se virem! Saio da pet shop correndo, e volto pro meu carro.
Pronto! Tão vendo como é simples cuidar de animais?
Na próxima crônica, conto como trouxe os bichinhos de volta ao lar.

terça-feira, novembro 14, 2006

VAMOS PARAR COM ESSA BAIXARIA

Dóris Fleury

Ficar famoso é fácil, não tem problema. Quer ver como? Arranje uma arma, seqüestre um ônibus e ameace matar sua ex-mulher e se suicidar. Sucesso garantido, melhor ainda que o Big Brother. Vem a Globo e filma tudo, você aparece em rede nacional. No fim da noite sua mãe também aparece, em prantos, jurando que você é um bom menino. E depois de espancar e humilhar sua vítima durante dez horas, você ainda sai de lá com um advogado.
O qual, aliás, jura que aquilo não foi seqüestro.
E pra fazer tudo isso, você ainda conta com a apoio e a cumplicidade da maravilhosa sociedade em que vivemos.
Duvida? Pois confira nos jornais da semana passada. É verdade que André Luiz Ribeiro, o seqüestrador do ônibus da linha 499, em Nova Iguaçu (RJ), depois de algumas horas liberou os passageiros do ônibus. Mas continuou ameaçando e espancando a ex-mulher, Cristina Ribeiro. Muitos dos passageiros, inclusive, optaram por permanecer no ônibus, para argumentar com o seqüestrador e fazer ele mudar de idéia.
Esse último detalhe tinha restaurado a minha fé na humanidade... até eu ler a entrevista com a própria Cristina, ontem, na Folha de S. Paulo. Olhem só o que ela conta:
"Ele era tratado o tempo todo como vítima. Depois de algumas horas, só os homens ficaram no ônibus. Todos diziam que não valia a pena brigar por mulher. Falavam que já tinham se separado. Ele me batia, arrancava os meus cabelos, e ninguém falava nada. Agora, ele já tem até advogado. Eu, que sofri por dez horas, não tenho nada."
O caso de Cristina só chamou nossa atenção porque virou seqüestro de ônibus. Mas nas últimas duas semanas, entre Rio e São Paulo, nada menos que quatro mulheres foram assassinadas por maridos, ex-maridos, namorados, amantes... Mal dá notinha no jornal.
A violência contra a mulher é tão corriqueira, que a gente incorporou como normal. Vou dar outro exemplo; passou, se não me engano, no SP TV na semana passada. Uma moça levou quatro tiros na cabeça, mas sobreviveu ilesa! Foi notícia, todo mundo ficou admirado com a sorte da menina. O que não deixou ninguém admirado foi ela ser vítima de um atentado do ex. Isso é banal.
Agora a Cristina está lá, na sua casinha de Nova Iguaçu, com o pescoço imobilizado, mandíbula fissurada, olho roxo etc. Vamos torcer pra que a história dela não tenha o mesmo fim que as das outras quatro mulheres que eu falei, né? Por exemplo: será que o André Luiz vai pra cadeia? Para a Cristina, isso pode significar a diferença entre a vida e a morte.
Vontade e disposição pra matar a ex, o André Luiz já mostrou que tem.
Sem falar no nosso apoio total e irrestrito.
Sim, apoio. A Cristina já sofreu espancamentos dentro de casa, ameças contra ela e sua mãe, estupro, cárcere privado. Ela e sua mãe cansaram de apresentar queixas contra o André Luiz. Já teve ocasião da polícia vir, pegar o indivíduo no flagrante, e nem assim prender. Ele continuou andando por aí belo e formoso. A polícia deixou. E é bom lembrar, cada sociedade tem a polícia que merece.
Numa das ocasiões em que prestou queixa, a mãe de Cristina ouviu de um policial a seguinte pérola: "Deixa eles se divertirem. A senhora está atrapalhando."
Delegacia da Mulher? A Cristina também esteve lá, e nada aconteceu.
Ou seja: todos nós somos cúmplices do seqüestro do ônibus 499.
Tomara que a gente não vire cúmplice do assassinato da Cristina, também. Ela tem três filhos.

Também li outro dia o depoimento da filha de Ângela Diniz, que foi assassinada pelo seu companheiro, Raul "Doca" Street há exatamente trinta anos. Como Cristina, ela tinha três filhos. A família nunca se recuperou.
E isso é gente rica, da alta sociedade de Belo Horizonte. Imagine-se o que acontece com uma família pobre que é alvo desse tipo de crime.
Assassinos de mulheres são pequenos Bin Ladens, explodindo suas próprias famílias e deixando a conta pra a sociedade pagar. E o detalhe mais triste é que, quando acontece uma coisa dessas, é sempre uma tragédia anunciada. Já houve ameaças, espancamento etc. Todo mundo sabe que um dia vai acontecer. Mas não tem nada não.
Como diriam os policiais de Nova Iguaçu: deixa eles se divertirem.

terça-feira, novembro 07, 2006

DE CARA COM A CARAS

Dóris Fleury

Todo mês eu vou ao cabeleireiro pra tingir, cortar, essas coisas. Sabe como é: não pode deixar cair a peteca, senão assusto as pessoas na rua. Eu chego lá, sento numa poltrona muito confortável, e o Fabiano me mostra aquela tabela ma-ra-vi-lho-sa de tons de cabelo. Dou uma viajadinha e escolho o tom que quero. (Aí já fico toda animada). Vem uma moça muito simpática e começa a me aplicar a tintura. Ela me pergunta se quero café, água, uma revista? Aceito café e revista, e invariavelmente aterrisa no meu colo um exemplar da Caras.
Eu adoro a Revista Caras.
A Revista Caras me diverte com seu humor involuntário.
A Revista Caras me lança num estado de profunda perplexidade, e levanta questões filosóficas que me fazem crescer espiritual e intelectualmente.
A Revista Caras tem uma seção de modelitos usados pelas celebridades que eu acho bárbara, muito instrutiva. Chama-se “Estilo”. Ali a gente aprende que tem celebridades que se vestem bem; e tem outras que deveriam ficar em casa, com um abajur na cabeça; pegava menos mal.
Mas o que eu curto mesmo são as manchetes. Geniais! Pra apreciá-las, ninguém precisa gastar uma grana comprando a revista; a gente pode passar momentos muito divertidos somente lendo as manchetes na banca de jornal. Eu sempre faço isso. Vocês não?
Quem abre a revista também pode se divertir com pérolas diversas. Olha só:

PELÉ COMEMORA EM FAMÍLIA 12 ANOS DE UNIÃO E DÉBUT DE DEJEMILLA.
CAROLINA DIECKMAN PRESTIGIA BODA DE APOENA, SEU EX-ENTEADO.

Essas duas manchetes me comoveram. Sério. Pra vocês terem idéia de como são as coisas: sendo eu uma pessoa idosa e provecta (daí precisar do cabeleireiro), me lembro que a coluna social de Bauru, na década de 70, já tinha aposentado, por excesso de cafonice, termos como "début" e "boda" (é casamento, pessoal). Ninguém mais usava essas palavras. E agora vai a Caras e ressuscita.

BONNER E FÁTIMA NA FESTA DE 9 ANOS DOS TRIGÊMEOS.

Eu não sei se a culpa é do casal global William Bonner e Fátima Bernardes. Ou da própria Caras. Mas uma coisa eu garanto: os trigêmeos têm nove anos, e o Brasil inteiro já está de saco cheio deles. Pobres crianças. Isso não é justo.

GIANCARLO CIVITA, CLÁUDIA COSTIN E BEATRIZ SEGAL COROAM OS DEZ PROFESSORES DO ANO.

Nada contra a educação, mas será que eles não preferiam um aumento de salário?

ADRIANA GARAMBONE LOIRA E CINCO QUILOS MAIS MAGRA.

Aconselho os repórteres da Caras a andar com uma balança a tiracolo, porque todo mundo que eles entrevistam está mais magro. Não será truque? Nunca vi uma manchete assim: "Fulano de tal, vinte quilos mais gordo..."

ADRIANE GALISTEU SE SEPARA DE .... (preencha as lacunas)

Essa é outra coisa que me intriga; mais uma vez, a culpa é da minha idade, né? Antigamente só se separava quem era casado, ou morava junto faz um tempão, de dez anos pra cima. Era um problema. Rolava advogado, as pessoas ficavam mal, as crianças traumatizadas etc. Agora qualquer neguinho que brigou com a namorada, com quem estava há vinte minutos, já vem dizendo que "se separou". Me chamem de conservadora, mas acho estranho.
Apesar da separação não ser mais trágica, na Caras as pessoas que se separam sempre usam óculos escuros. (Pra mostrar que estão tristes, imagino). Inclusive essa semana rolou a separação da Marília Gabriela e do Reynaldo Gianecchini, e podem conferir: eles estão com uns óculos enormes! O Gianecchini, além disso, ostenta um bigodinho de comediante italiano dos anos 50.
Começo a entender o problema. Vai ver a Marília Gabriela falou assim: "Gianecchini, escolha: ou eu ou o bigode!" E ele se foi... Triste. Bem triste. Mas diz aqui que eles continuam amigos. Chuif.

XUXA MENEGHEL ADMITE QUE NÃO QUERIA CRESCER.
"EU FIQUEI UM POUCO RETARDADA", DIZ ELA.

Eu juro por Deus, estava desse jeito na revista! Não inventei nada! Agora vocês entendem porque eu falei do humor involuntário? É o melhor do mundo.
Repito, não inventei nada. Nem eu, nem a Xuxa.
Mas a Caras é assim: sempre descortina novas possibilidades. Lança desafios intelectuais. Coloca o leitor num estado de perplexidade crítica.

POÉTICA REUNIÃO DOS ATORES BRUNO GAGLIASSO E CAMILA RODRIGUES.

Quem é o Bruno Gagliasso? Quem é a Camila Rodrigues?
Quem sou eu? O que estou fazendo nessa cadeira, com essa revista na mão?
E será que preciso mesmo de tintura?

terça-feira, outubro 31, 2006

UM DOMINGO COMO OS OUTROS

Dóris Fleury

Anteontem foi domingo, o que vocês fizeram?
Pra mim, foi um dia muito ocupado. De manhã, fomos comprar comida pros cachorros e areia pra gata. E depois ainda fizemos supermercado.
Tá um absurdo o supermercado. Tudo pela hora da morte etc. Mas tinha camarão baratinho. Eu passei pelo balcão de peixe e falei pro meu marido, você não acha que este camarão 'tá com uma cara boa? e ele falou, não. Mas como é uma pessoa muito reflexiva, três prateleiras mais tarde mudou de idéia. E levamos os pacotinhos.
Antes do almoço, eu e minha filha saímos pra ***. A Marília comentou que, apesar dos pesares, estava entusiasmada. Essa era a primeira vez na vida que ela participava de um acontecimento tão importante como ***.
Voltamos pra casa e almoçamos camarão com espaguete. Estava uma delícia, até a gata veio farejar. Comemos e depois cada um foi fazer uma coisa. Eu fui varrer a calçada, minha filha estudar pro cursinho, meu marido pra um concurso que ele vai prestar.
Quando terminou o estudo, ele foi correndo ver TV, porque estava ansioso para assistir o último boletim das ***.
De noite, a Ma foi dormir na casa da avó. A empregada da minha sogra não pode ficar lá nesse domingo, porque teve de ***. Eu e meu marido fomos assistir uma peça na Casa das Rosas, na avenida Paulista. Chegou lá teve um problema sério: os atores não conseguiam fazer o espetáculo em paz, porque ficava passando um helicóptero em cima, fazendo um barulhão ensurdecedor. Os atores e a diretora estavam furiosos com aquela porcaria daquele helicóptero, que só estava lá por causa da manifestação das ***.
Bom, saímos da Casa das Rosas e fomos andando pela Paulista. No caminho encontramos a Ciça que é uma hipermega amiga minha que eu não via há muito tempo. Ela disse que a gente tinha de ir tomar um vinho na casa dela, e a gente nem foi besta de recusar o convite.
A Ciça mora num apartamento pertinho da Paulista, com duas gatas e um marido, o Celso. Fomos recebidos só pelas gatas, porque o Celso, que é jornalista, estava no trabalho fazendo a cobertura das ***. Ficamos batendo papo e tomando vinho e a Ciça mostrou pra gente uns CDs bárbaros que eram tipo "O melhor do brega dos anos 70", mas não com esse nome, é claro. Tinha coisas inesquecíveis: Perla, Sidney Magal, Gretchen, Fábio Júnior, Antônio Marcos, era imperdível! Só ficou faltando o meu clássico predileto do Odair José, Eu vou tirar você desse lugar!
Em compensação, tinha vários CDs da Madonna. Então tomamos mais umas e ficamos dançando loucamente a Madonna. E é claro que o único homem presente achou que a gente estava com um parafuso solto.
Mas isso é porque ele não entende que as mulheres - mesmo as que não gostam da música da Madonna -, enxergam nela uma imagem de poder feminino muito importante! Se eu fosse a Madonna, teria um monte de grana, mandaria num monte de homens, e para isso nem precisaria ser uma executiva que anda a vida inteira metida num tailleur muito sem-graça.
Eu não seria apenas poderosa, seria gostosa também!
E moraria num castelo inglês.
Com essas e outras, acabamos esquecendo o assunto do dia, que eram as ***. E quando saímos do apartamento da Ciça já era mais de meia-noite e a gente estava ligeiramente alterado, se é que vocês me entendem. E com isso perdemos a manifestação que aconteceu na Paulista logo após as ***.
Fomos pra casa e caímos duros na cama, mas não sem antes dar uma olhadinha na televisão pra mais uma vez ver o resultado das ***.

Enfim, esse foi meu dia de domingo.
Ou seria meu dia de domingo. Mas eu cortei umas partes. Aquelas em que Lula se reelegeu para o segundo mandato.
Agora vamos completar as lacunas.
Eu e minha filha votamos com a maioria.
Meu marido não votou, porque é estrangeiro.
Muitos amigos meus, ex-petistas, votaram nulo. E eu respeito a posição deles.
Na manifestação a gente nem foi, porque tava meio chocha e com cara de encomendada.
A Madonna também não votou. Mas continua poderosa. E mais gostosa do que qualquer um dos candidatos.
Você pode continuar fingindo que política não existe. Ou que não tem efeito algum no seu dia-a-dia.
Ou pode preencher as lacunas.
A escolha é sua.

Observação: Nenhum dos gatos que aparece neste texto sofreu maus-tratos, nem foi obrigado a votar.
Os produtores desse texto gostariam de agradecer aos produtores dos CDs da Madonna.
Miau pra vocês.

terça-feira, outubro 24, 2006

GIRL POWER


Dóris Fleury

Gente, vocês viram O diabo veste Prada? Vão ver! Não percam!
Antes de mais nada, é um filme sobre moda, e os modelitos das atrizes são divinos! Mas por baixo da superfície glamurosa e do final açucarado (o livro é bem mais incisivo), tem uma discussão interessante ali.
Pra quem não viu, a história é a seguinte: garota inteligente e idealista, recém-saída da universidade, vai trabalhar como assistente de Miranda Priestly (Meryl Streep, como sempre fantástica) uma editora de moda de Nova York. A mulher é poderosíssima, e ao que tudo indica, existe mesmo: foi baseada em Anna Wintour, editora da Vogue americana. Os estilistas fazem desfiles só pra ela, e, se ela não gostar, reformulam tudo. Dá até pena dos coitados.
O pessoal que trabalha pra Ms. Priestly tem pavor dela, e se mata pra atender seus mínimos desejos. Ela já entra no escritório, de manhã, disparando um monte de ordens ao mesmo tempo, desde aquelas relacionadas ao trabalho até caprichos pessoais. Um dos pontos altos do filme é quando ela manda a heroína atrás do último volume de Harry Potter para suas filhas - antes mesmo que chegue às livrarias! Humilha as pessoas em público, é falsa, mau-caráter, e exige que a pobre assistente fique de plantão no celular 24 horas por dia, sete dias por semana, atendendo aos pedidos mais absurdos.
Me identifiquei muito com o filme. Eu já tive uma chefe assim...
Quem acha que as mulheres no poder são mais boazinhas e democráticas do que os homens, obviamente nunca trabalhou com essa jornalista. (Nem com a Margareth Thatcher). Não vou usar meias-palavras: a mulher era uma vaca. Horrível. Se não tinha poder para mandar as pessoas buscarem seu poodle no veterinário, em compensação tratava supermal os subordinados, de pura crueldade. Um dia, olhou pra barriga de uma amiga minha e disse: “Sabe, se você não estivesse grávida, ia pra rua agora”. A menina é uma das melhores repórteres que já vi. Grande texto. E era precisamente isso que a secretária de redação odiava em minha amiga: o talento. Porque ela não tinha nenhum.
Todo mundo morria de medo da criatura, não porque ela demitisse pessoas, mas porque as humilhava publicamente. Apelidada na redação de Maga Patalogika, tinha um jeito de olhar por debaixo da franjinha que fazia você se sentir no Pólo Norte... Pessoas talentosas e inteligentes viravam ratinhos amedrontados, debaixo daquele olhar glacial, e do tom de voz cheio de desprezo. E, com tudo isso, não sabia escrever, não sabia dirigir um jornal, não sabia bolar uma pauta, nada. Era um monumento de incompetência. Sua única habilidade era intrigar e manipular.
A cada dia a sua burrice e prepotência ficavam mais óbvias. Era caso de demissão mesmo. Mas naquela época o chefe de redação era: primeiro, um dos maiores jornalistas do Brasil; segundo, uma das pessoas mais íntegras que já conheci; terceiro, uma verdadeira mula. Teimoso no úrtimo. Cometera um erro grave contratando a mulher, e não queria dar o braço a torcer... Mas estando ali, pelo menos contrabalançava a megera.
Eu trabalhava como repórter e ela engavetava sistematicamente todas as minhas matérias. Não tive dúvidas, fui reclamar com o chefe de redação. Me lembro como se fosse hoje: o cara franziu a testa, foi até a escrivaninha da bruxa, arrastando a perna (que SAUDADES eu sinto dele, gente!) e pediu pra ver as minhas reportagens engavetadas. Leu uma, leu outra, depois encarou a monstra e perguntou: “Por que você fica pagando frila para fazer matérias, quando a gente tem coisa muito melhor na redação?” A partir daí, nunca mais tive problemas com essa mulher.
Nota ao pé da página: claro que a autoridade feminina sempre desperta mais raiva. Um chefe que se comportasse da mesma maneira que a Meryl Streep, no filme, não chamaria a atenção de ninguém. É normal. Mas a mulher, todos esperam que seja boazinha e compreensiva.
E agora vou contar outra história. A história do melhor chefe que já tive na vida.
Ele dirigia a editoria mais bacana do jornal. Produzia as melhores reportagens e o caderno mais coerente, mesmo com escassos recursos materiais. Era justo e compreensivo com as dificuldades dos seus subordinados. Não pedia a mesma dedicação de uma garota solteira de vinte anos e de uma atarefada mãe de três filhos. Dava condições para as duas trabalharem e SEMPRE conseguia o melhor das pessoas. Era exigente sem ser chato. Ensinava jornalismo com prazer, e adorava repartir o que sabia. Conversava muito. Pedia opiniões. Assumia responsabilidade pelos erros que eram seus, enquanto editor, e não jogava a culpa nos subordinados, como virou moda fazer hoje em dia, nas redações. Nunca perdia a calma. Ouvia sempre os dois lados. Dava aulas de ética e de profissionalismo on the job. Era adorado por todos que tiveram a felicidade de trabalhar e crescer com ele.
Ah, só um errinho meu! Esqueci de dizer. Contei essa última história no gênero errado. Esse chefe era mulher.

Moral da história? Bom... acho que nem precisa explicar, né? Girl power é isso aí. É poder como outro qualquer. Pode ser muito bom. Pode ser um horror.
Mesmo que vista Prada.

sexta-feira, outubro 06, 2006

27 de setembro de 2006

Mais um caso de “home-schooling”, só que esse é mais complicado. É o Matthew, filho da Vicki e do Mark. Moleque espertésimo. Enquanto os pais trabalham, ele e a Megan, filha da Rose, ficam na cozinha batendo papo com os escritores. É uma das poucas oportunidades que tenho por aqui de conversar com gente simples e despretensiosa.
- E aí, Matt, porque você foi estudar em casa?
- Well – ele começa, todo compenetrado – I’ve had a very interesting life!
Caímos na gargalhada, mas ele não se afeta, e continua a sua biografia... todos os dez anos dela! Parece que a família morava numa cidade maior, e o Matthew sentiu uma tremenda diferença quando veio pra cá. Foi separado dos avós. E entrou numa escola que positivamente odiou. A professora berrava com as crianças. As classes do terceiro ano e do quarto ano, por algum motivo (falta de professores?) foram reunidas e ficou uma tremenda confusão. O Matthew não estava aprendendo nada e se sentia muito infeliz. “It was very hard on me!”.
Como a coisa só ia de mal a pior, a mãe tirou da escola e agora está ensinando em casa.
Fiquei olhando o Matt e pensei: alguma coisa está errada. O moleque é superinteligente, articulado, tem um vocabulário acima da média. Como é possível que a escola não consiga ensinar ele? Isso não faz o menor sentido.

Detalhe que fiquei sabendo depois: a escola já pregou um rótulo no Matthew. Diz que o menino tem dislexia e “distúrbio de atenção”.

29 de setembro de 2006

Passei o último dia da Ledig House escrevendo, arrumando minhas malas e passeando com a Megan e o Matt. A Megan, quando soube que eu ia embora, disse:
- Mas é muito cedo!
- Depois chegam mais escritores, Megan.
- But you’re my favourite!
Olha que bonitinha.

A experiência aqui teve saldo positivo: estou saindo com o meu romance debaixo do braço, praticamente pronto. Sem dúvida alguma a Ledig House me deu espaço e tranqüilidade para trabalhar.

O hotel que reservei aqui em Nova York se chama Marrakesh e fica na Broadway com 103. Não é ruim não, um tantinho claustrofóbico mas de forma geral OK.

Hoje fiz dois grandes passeios: no Greenwich Village, que foi ótimo, o bairro é um tesão, e também na Columbia University. Nesse último lugar fiquei um tanto triste, me deu um bode...
Sempre lamento meus anos de universidade, que poderiam ser melhor aproveitados se eu descobrisse logo que o meu negócio era escrever. A USP é extremamente cruel com seus alunos. Jogam a molecada lá dentro, e eles que se virem. O que a burocracia da USP mais quer é se ver livre logo dos caras. “Puxa, a universidade é tão bacana! pena que tenha alunos, né?” O aluno é um empecilho, um pé no saco. Todo mundo torce pra ele pegar logo o diploma e sair correndo.
Os professores querem morrer mas não querem dar aula pra graduação.
Aqui nos EUA você sente um cuidado, uma atenção maior com o estudante, que afinal das contas é jovem e ainda está se encontrando. Tem serviço social pra acompanhar o cara; e o que é mais importante ainda, ele é orientado nas suas escolhas profissionais. E não precisa decidir nada correndo, vai fazendo as matérias que mais lhe interessarem. Tem professores para orientá-lo. Tem programas para ajudar quem quer escrever. Imagine se eu tivesse isso na minha época.
Passei os quatro anos de USP tão deprimida e confusa que nem conseguia pensar no que estava fazendo.
Começar a escrever com vinte anos, e não com 35, teria feito uma puta diferença pra mim...

O primeiro dia aqui foi legal, mas um tanto confuso, perdi muito tempo no metrô. Amanhã quero deixar meus passeios bem planejados para não perder tempo.

30 de novembro de 2006

O DW, que mora em Nova York, me disse que nos últimos anos a cidade mudou muito. A classe média se mudou pros subúrbios, porque Manhattan ficou caríssimo, impossível. Na ilha só ficaram os muito ricos e os muito pobres. Para esses últimos, o governo constrói os “projects”, conjuntos habitacionais que basicamente funcionam como depósitos de pobre. (Lá em Hudson fizeram um desses, e chamaram os pobres de Nova York pra morar. Só esqueceram de um detalhe: não tem emprego na região. Então agora os pobres ficam ganhando “social security” e fazendo porra nenhuma, parados na porta dos projects o dia todo).
Dá pra ver a mudança da população até no metrô. Tem muito mais pobre do que classe média.
O metrô de NY continua eficiente, abrangente, razoavelmente barato... e sujo, feio e fedido. Vim aqui há dez anos e já era assim, uma vergonha. Nem o de Paris é tão xexelento. As estações mais ferradas cheiram xixi que é uma coisa impressionante. Um nojo.
Pra contrabalançar o cenário decadente, tem gente cantando e tocando no metrô que é uma maravilha. Geralmente músicos pretos, ops, desculpa! é pra dizer afro-americanos, né? senão é feio, politicamente incorreto e Papai do Céu castiga.
Hoje estive em Tribeca/ Soho, depois fui pra Quinta Avenida e à noite ao cinema.
Entrei em oitocentas lojas, xeretei durante horas e não comprei quase nada. Só um batom na Body Shop e livros, claro. Ah! E um pirulito com um escorpião de verdade dentro. Verdade. É pro meu sobrinho Pedro. Garanto que ele vai adorar.
É a capital do consumo mesmo, tem de tudo: caro, barato, pra todos os gostos e bolsos. E hoje era sábado, a cidade estava cheia, você tropeçava nas pessoas. Na maior parte, pelo que deu pra ver, novaiorquinos mesmo. Claro que sempre tem turista, mas nessa época é pouco. Baixa estação.
Ah, sim, retiro o que disse sobre os novaiorquinos. Até que eles estão bonzinhos dessa vez. Bem educadinhos e tal. Assim que eu gosto. Só tem uma exceção: as meninas do Au Bom Pain.
O Au Bom Pain é uma rede de lojas tipo fast-food, só que com mais variedade. As meninas que trabalham lá tratam cada cliente, individualmente, como se ele tivesse assassinado a família delas. Impressionante. Não é só que elas te tratem mal, não. Elas te dirigem olhares de ódio real e verdadeiro. Dá até medo. Era sim há dez anos, continua assim até hoje. Vai ver é uma tradição.
Aí vocês perguntam: mas se é tão ruim, por que você continua indo lá? Resposta: é a sopa. Aí vocês perguntam de novo: a sopa é tão boa assim? Não particularmente. É que eu sou viciada em sopa. Se alguém por favor souber de outro lugar em Nova York que fizer sopa gostosa e barata, me comunique urgentemente. Assim eu fico livre do Au bon pain, nunca mais volto lá.
Ou por outra, volto sim. Pra xingar aquelas atendentes malvadas e dizer que não preciso mais da sopa delas! E plaf! (Isso fui eu batendo a porta).
Quero ver a cara delas.

1º de outubro de 2006

Hoje de manhã fui ao Cloisters, um museu maravilhoso que fica na ponta norte da ilha, lá pela rua 190. E por falar em rua 190... o meu grande problema, nessa visita a NY, é a minha maldita falta de senso de orientação.
Não adianta, sou um caso perdido. Se consigo me perder no meu bairro em São Paulo, onde moro há vinte anos, por que não me perderia aqui?
Não consigo ler mapas. Sempre que pego um mapa, me confundo com direita e esquerda. Gasto dez minutos para identificar a estação onde devo descer; mais dez para achar a estação no mapa da cidade; e daí vou e faço tudo errado do mesmo jeito.
Só hoje me dei conta do que significa “downtown” e “uptown”. O conceito de “East” e “West” continua sendo um mistério insondável pra mim.
Uso a entrada errada do metrô, e depois tenho que subir as escadas e procurar a certa.
Passo na frente de uma placa dizendo “Broadway”, com setinha e tudo, e continuo dando voltas, procurando... a maldita Broadway.
As ruas de Manhattan são numeradas em seqüência (47, 48, 49...), assim como suas principais avenidas (Quinta, Sexta, Sétima, Oitava... a única exceção é a Broadway). Só uma idiota conseguiria se perder num lugar assim. Pois bem, essa idiota sou eu.
Nessas horas, fico olhando desesperada os meus mapas no meio da rua. Bons samaritanos me abordam e perguntam, caridosamente, se preciso de informação. Deus os abençoe! Eles me informam, eu entendo tudo, e cinco minutos depois estou perdida de novo.
Talvez eu deva adotar um cão guia, como os cegos.

Tomei dez minutos de chuva porque passei impávida pela entrada do parque onde fica o Cloisters. O museu é num lugar deserto de Manhattan; ou melhor, num lugar que era deserto na época em que a instituição foi fundada, com a grana dos Rockfeller.
Coisa louquíssima: eles construíram uma espécie de castelo medieval moderno, salpicando um pórtico românico aqui, uma capela gótica ali, o túmulo de um nobre mais acolá... todas as coisas que os milionários americanos compraram na Europa, na época em que arte era barata e os europeus, uns tontos que vendiam seus tesouros a preço de banana. Hoje já não é mais assim. Tem processo correndo, tem gente querendo de volta o que foi vendido. É uma longa discussão. Os americanos dizem que essas preciosidades estão melhor guardadas com eles.
Pode até ser. Mas depois do que eles fizeram com o museu de Bagdá, a moral deles ficou um pouco abalada nesse setor... né não?
O Cloisters é muito bonito e tem curiosidades como um jardim com plantas medicinais, ornamentais etc, que eram cultivadas na Idade Média e aparecem nas tapeçarias do acervo. Bem legal.

À tarde fui pra Little Italy - aquele lugar cheio de restaurantes onde os gangsters comiam um espaguete de primeira, e às vezes levavam uns tiros de sobremesa.
Mas hoje, todo esse aspecto típico e pitoresco desapareceu. No lugar dos italianos entrou outro povo típico e pitoresco, que são os chineses, vendendo relógio roupa bolsa comida típica erva medicinal MP3 player perfume aparelho de som... é tanta coisa, dentro e fora das lojas, que você fica tonta. No domingo então, fica lotado de gente e aí é um horror. Encontrão pra cá, bolsada pra lá, pisam no seu pé... Todo mundo nervoso, querendo levar pechincha pra casa de qualquer jeito. Calma gente, tem pra todos!

Nova York é uma esquina do mundo, tipo Paris e Londres. Tem gente de todas as nacionalidades e etnias possíveis, mas a língua mais falada na cidade hoje é o espanhol. Seguido de perto por um tal de inglês, já ouviram falar?

Hoje tinha um rato no metrô. AI QUE NOJO. Irc.
Também, com aquela sujeirada toda...

5 de outubro de 2006

Saiu uma matéria no New York Times que eu tenho de comentar, porque é hilária!
A Vigilância Sanitária da cidade está querendo instituir novas leis para os restaurantes. Já se sabia que o fumo, ali, seria definitivamente proibido; e que as gorduras “trans” iriam pelo mesmo caminho. Mas existem mais idéias chegando por aí, e podem virar lei...
Pra começo de conversa: vamos combater a epidemia de obesidade. Os novaiorquinos estão ficando gordos! Por isso, os blintze (pãezinhos que vêm de graça, acompanhando o menu) serão reduzidos a dois por cliente. E fim de papo, não pode pedir mais.
Mas a obesidade não é o único problema que preocupa esses dedicados funcionários. Tem também a história do engasgamento. Nunca entendi porque, deve ser uma fixação oral; mas os americanos vivem preocupados com a possibilidade de engasgarem com a sua comida e morrerem sufocados. É uma obsessão nacional. Aí estão bolando uma idéia assim: os garçons, depois de servirem a comida, ficarão observando os clientes pra ver se eles cortam a comida em pedaços pequenos e mastigam direitinho. De relógio na mão, o garçom verificará se o cliente mastiga sua comida em no mínimo doze segundos. Inventaram até um nome bonitinho pra isso: é a PMI, Proper Mastication Initiative.
Outra: álcool faz mal pra saúde, todo mundo sabe. A idéia é limitar o consumo a duas doses por refeição. E chega!
Café, todo mundo sabe, dá insônia. Por isso, depois das dez da noite, os restaurantes novaiorquinos só serviriam o descafeinado.
E antes que vocês morram de rir e se sintam superiores aos americanos bobocas, lembrem-se: nós vivemos copiando as idéias deles. Cuidado, senão dia desses não poderemos mais comer uma chuleta sossegados, sem um garçom de plantão atrás da gente. Eu não duvido nada.

Pra mim, em Nova York, a diversão acabou quando chegou a hora das compras.
Não me entendam mal. Como todo mundo, adoro fazer compras. Adoro voltar pra casa com as sacolas cheias de coisas legais e diferentes, que não existem no Brasil - ou que até existem, mas aqui são muito mais baratas.
Não ligo pra roupa; adoro bugigangas eletrônicas, perfumes, CDs e livros, muitos livros!
Mas fazer compras em Nova York dessa vez foi uma tortura. Começou com um problema religioso: na segunda-feira era Yom Kippur, o principal feriado judaico. Tinha exatamente duas lojas abertas na Oitava Avenida, que é o melhor lugar pra comprar eletrônicos. Se eu soubesse disso, nem tinha ido pra lá naquele dia.
E sempre vem um brasileiro te contar que viu uma oferta fantástica numa loja que hoje, infelizmente, não está funcionando!
Eu poderia voltar no dia seguinte. Mas aí já seriam duas manhãs consecutivas vagando feito alma penada na avenida. Procurei eletrônicos em outros lugares, não achei nada que prestasse. No começo da tarde meus pés estavam me matando e aí pensei: compro tudo hoje mesmo nas lojas goy. Dane-se. Não vou ficar dois dias seguidos nessa situação.
Mas depois que tomei essa resolução, ainda sobrou um probleminha. Sou muito indecisa e demoro horas pra me decidir entre o modelo A e o modelo B. E coitada de mim, se surgir um modelo C!
Isso vale também para os perfumes, que são uma verdadeira tara pra mim. Deus criou os perfumes pra enlouquecer a Dóris. Aí eu entro na Sephofora, que é uma rede francesa de lojas de cosméticos que se instalou com tudo em NY. Entro e experimento todos, mas eu disse todos os perfumes femininos da loja. Se bobear, também uns masculinos.
Tenho até pena das pessoas que se aproximam de mim depois disso. Devo feder gloriosamente. E, é claro, não consigo me decidir por nenhum produto.
No último dia, a poucas horas de pegar o avião, resolvi ser dura comigo mesma. Olhei pro relógio e pensei: vou me dar exatamente meia hora pra escolher dois perfumes, e pronto. E cumpri o prazo!
O resultado é que estou até hoje olhando para dois perfumes e suspirando por um terceiro, que ficou lá na loja.
Livros: também saí da história me achando uma besta. Livro aqui é muito mais barato do que no Brasil, é impressionante. Mas me segurei pra não comprar tudo que via, porque depois teria que mandar pelo correio e tinha medo que ficasse muito caro (carregar no avião é excesso de bagagem na certa).
Aí na terça-feira de manhã descubro que, se você pode mandar um monte de livros pelo correio gastando uma merreca, tipo doze dólares. Me senti uma imbecil, mas já era tarde demais.
Ou seja... por mais cálculos que você faça, sempre sai frustrada. E é claro que, enquanto está pensando e calculando e negociando seus desejos, não passeia.
No meio do dia você está exausta, querendo sentar, descansar, comer, ir ao banheiro... e quem diz que tem lugar pra tudo isso? Pra comer tem as delis, com um monte de comida deliciosa; mas a maioria sem mesas para o cliente sentar, porque deli é mais supermercado do que restaurante. E os restaurantes propriamente ditos são caros. O Central Park está longe, você está cansada demais pra andar... e além disso, não gosto de almoçar com esquilos e sem-teto olhando minha comida.
Embora ainda prefira os esquilos às moças do Au Bon Pain.

Sair do hotel foi uma epopéia. Eu sempre faço malas grandes demais. Eu sempre uso no máximo a metade do que botei lá dentro. E, na volta, sempre tenho que comprar outra mala vagabunda, só pra acomodar o excesso.
- Ten dollar, lady, ten dollar! – apregoava o moleque na calçada de Chinatown, mostrando uma malinha barata dessas com rodinhas.
- Com o carrinho e tudo, ten dollar?
- Ten dollar, lady, ten dollar!
O moleque chinês não devia ter nem dezoito anos, e tudo que ele sabia falar em inglês era “ten dollar”. Eu tinha acabado de comer um cheesecake e estava de bem com a vida. Comprei. Quando cheguei em casa, percebi que o fecho da danada era precário. E daí que era ten dollar? Bela porcaria.
Na tarde de terça-feira, 3 de outubro, saí do hotel levando uma mala azul imensa, enorme, assombrosa, com a qual sempre viajo, e que no final da viagem estou sempre odiando. E mais a ten dollar xadrezinha onde só botei roupa, rezando pra que não me acontecesse nenhum acidente ridículo e as pessoas na rua ficassem sabendo exatamente que tipo de pijama gosto de usar.
As duas malas tinham rodinhas. Bela porcaria. Algumas coisas na vida são superestimadas, e aí está mais uma: as rodinhas.
Tive que fazer três baldeações de metrô até chegar ao aeroporto, arrastando minhas malas. Dava pra ver pela cara das pessoas que elas estavam morrendo de pena.

E aí no aeroporto você começa a pensar.
Bem que eu podia ter visto de novo a Frick Collection.
Ou o MOMA que eu não conheço.
Bem que eu podia ter assistido uma peça de teatro na Broadway.
Bem que eu podia ter ido ao Harlem ouvir um coro de igreja.
Ou passeado um pouco mais pelo Central Park.
Ou tomado um brunch de verdade na manhã de domingo.
Ou isso... ou aquilo...
Vai saber quando vou ter grana pra voltar.
E esqueci daquele passeio às margens do rio!
Mas aí é tarde demais, porque a aeromoça está pedindo pra apertar os cintos, os motores estão roncando, o avião taxiando pela pista. Ou seja: acabou-se o que era doce. Talvez as experiências boas da vida, sejam exatamente aquelas que te deixam querendo mais.
E mais. E mais.

Nova York é a grande cidade em todo seu esplendor, a Babilônia de luzes faiscantes, a Meca para onde vem gente de todos os lugares do mundo, querendo fazer sucesso ou simplesmente sobreviver.
O resto da América detesta Nova York. Chamam de “Liberalville”.
No mundo inteiro, fundamentalistas de todas as religiões odeiam a Grande Maçã. Como deu para ver recentemente.
Vão por mim: alguma coisa de bom essa cidade deve ter.

terça-feira, setembro 26, 2006

19 de setembro de 2006


A estrela da noite foi a nova residente, a jornalista americana Stephanie Elizondo Griest, que escreve livros sobre suas viagens pelo mundo. O próximo é sobre a “revolução silenciosa” no México. Pouca gente sabe, mas em muitos lugares desse país, o povo virou as costas para o governo corrupto e ineficiente e partiu para a autogestão.
A mulher é ótima: aquele tipo de esquerda americana que, se por um lado é muito idealista, por outro lado tem um saudável lado pragmático.

A Ledig House é uma das poucas experiências na minha vida das quais eu esperava muito, e que acabou me saindo melhor ainda!
Se eu pudesse citar uma decepção com essa temporada, seria o fato de que meus colegas residentes não discutem seus projetos literários comigo. “O que você está fazendo?”, pergunto, e geralmente recebo uma resposta vaga. Hoje o Kjell me deu uma explicação para esse tipo de atitude: as pessoas têm medo que suas idéias sejam roubadas. “Eu mesmo já fui assim”, confessou. “Mas com o tempo percebi que, mesmo que alguém roube a minha idéia, só eu posso escrever aquele livro”.
Garoto esperto... (apenas 45 anos).

20 de setembro de 2006

Meu romance está chegando ao fim e isso me assusta. Achava que no máximo ia dar uma boa adiantada... Mas um terço do livro, na verdade, já estava pronto quando eu cheguei aqui.
Esse livro está parado há um ano. Eu achava que o projeto estava em coma. Mas este tempo todo ele estava sendo escrito na minha cabeça. Quando você é escritor, boa parte de suas escolhas acontece em nível subconsciente. Tive essa oportunidade pra escrever e a coisa veio automaticamente.
Na Ledig House, me impus um ritmo de dez páginas por dia. Nessa toada, qualquer um acaba um livro rapidinho. Mas tem seus custos. Não tive um dia de descanso desde que cheguei aqui. Em algum momento vou ter que tirar um dia de folga. Estou exausta. Preciso parar de escrever à noite, pelo menos o romance. Ficar escrevendo me deixa ligadona, e depois não consigo dormir.
Enquanto isso, muitos dos meus colegas estão flanando. Mas a organização não se importa, acha que faz parte. A filosofia aqui não é de campo de trabalhos forçados. E faz sentido, pensem bem: como é que você vai pedir a um poeta, como o Armin ou a Anzhelina, que sente ao computador e escreva o tempo todo? Seria ridículo.
Nem ficcionistas não funcionam desse jeito. O Luis, aquele espanhol que já foi embora, veio aqui para fazer apenas o planejamento de seu próximo romance.
Uma vez pronto, não sei o que vou fazer com o livro. Já estou vendo o seu triste destino. As editoras especializadas em ficção científica, fantasia, etc, vão torcer o nariz, achando que ele é muito “cabeça”; que não é coisa pra nerd, enfim. As editoras sérias, só de ouvir a expressão “ficção científica”, vão tampar o nariz, porque isso não é coisa de escritor “sério” nesse país. Estou fodida e mal paga.
Mas não importa; mesmo assim, estou feliz com o que escrevi. É um livro que acontece em muitos níveis, uma ficção científica escrita sob o ponto-de-vista feminino (de várias mulheres, as mais diferentes possíveis), com uma narrativa pouco convencional, de várias vozes, e que acontece em muitos lugares do mundo ao mesmo tempo. Se tudo der certo, meus leitores começarão o livro achando que estão lendo FC; no meio dele, descobrirão outros sentidos para a história.
Da próxima vez, quero escrever um romance “de verdade”, bem compacto, só pra provar a mim mesma que sei fazer isso. Depois volto para meu objetivo literário, que é borrar de bagunçar estruturas.
Tem tanta coisa pra fazer, que às vezes eu me pego pensando: porra, já tenho 44 anos! Será que consigo fazer tudo isso? Que bosta! E se eu morrer antes? Já imaginou a sacanagem?

22 de setembro de 2006


Os americanos abrem estradas nessa região tão linda, compram uns carrões possantes (nunca vi tantos utilitários como aqui, haja gasolina, não é à-toa que eles precisam invadir o Iraque), correm feito loucos, e o resultado é um massacre cotidiano de animais. Só hoje, na minha caminhada diária, vi dois passarinhos, um coelho e um guaxinim mortos. Atropelados. É de cortar o coração. O que fizeram os bichinhos para merecer uma morte dessas?

Ontem estava conversando com a Rose, a moça que faz a limpeza aqui. Ela tem, pasmem, senhores, cinco filhos. Que coragem. Todos eles são “home-schooled”, ou seja, ensinados em casa, e não vão pra escola. É muito simples. Você comunica a sua opção pra Secretaria da Educação da sua cidade, ou seja lá como se chame esse órgão, e eles são obrigados a fornecer todo o material e orientações pra você ensinar as crianças em casa. E os filhos dela estão bem, entraram em universidades; pode não ser Ivy League, mas eles se viraram.
Eu já tinha ouvido falar dessa história, mas sempre achei que era coisa de puritanos fanáticos que não queriam que seus filhos se corrompessem, aprendessem Teoria da Evolução etc. A Rose não parece desse tipo – senão acho que nem estaria na Ledig House. Ela disse que hoje em dia os professores não têm o menor controle sobre a molecada e o ensino é muito ruim, eles acabam não aprendendo nada.
Claro que isso implicou um tremendo sacrifício pessoal. Ela e o marido viviam trancados em casa, ensinando a molecada.
Acho que até entendo as razões deles, mas que numa grande cidade seria impossível fazer isso. As crianças viveriam trancadas num apartamento, não teriam amigos, seria um horror. Num lugar como esse, você solta os filhos na rua e tudo bem, eles vão ser como qualquer outro moleque. Mesmo assim, acho uma opção temerária.

Resolvi acrescentar mais uns capítulos ao meu romance. Vai ter um monte de andróides. Adoro andróide!

23 de setembro de 2006

Minha estadia na Ledig House está chegando ao fim. Faltam só cinco dias. O que é bom, porque já estou com saudade de casa. Hoje minha filha me ligou pra dizer que está morrendo de saudades de mim, também. (Garanto que ela diz isso pra todas as suas mães...)
Amanhã vou me dar um dia de folga.

Estou aqui na Ledig House feito uma esponja. Assim que chega uma pessoa nova, salto em cima, pra saber quem ela é, o que já fez, o que está escrevendo, de onde vem, como são as coisas no seu país... Minha curiosidade não acaba mais.
Hoje chegou uma australiana, a Robbi Neal. Outra figurinha carimbada, que teve uma vida louquíssima: foi pentecostal, casou com dezenove anos, depois virou ministra da Igreja, fugiu com um viciado em heroína, teve câncer, escreveu sua autobiografia, e hoje vive casada e feliz com cinco filhos. Cinco! Nossa Senhora! Depois dizem que somos nós, do Terceiro Mundo, que causamos a superpopulação.
A Robbi recentemente fez um cruzeiro com o marido dela e nos contou umas histórias escabrosas sobre esses navios. Nunca mais embarco num, Deus me livre e guarde.
Diz ela que, pra começo de conversa, existem ali dois tipos de tripulação: a dos chefes, composta de australianos e gente do Primeiro Mundo em geral; e a do proletariado, digamos assim, que vem de países tipo Indonésia e exercem trabalho escravo. Escravo mesmo. Você chega e tem de trabalhar a troco de nada, porque está “devendo” não sei quanto pra empresa. E depois só ganha as gorjetas que os passageiros te dão. Agora, na Austrália em particular, não existe o hábito de dar gorjetas; então esses caras não ganham nada e são maltratados tanto pelos chefes como pelos passageiros.
O tipo de gente que embarca nesses navios é trashão. As mulheres fazem o gênero jovem-perua-cheia-de-amor-pra-dar. Os homens bebem de manhã até de noite; o bar fica aberto das nove da manhã às quatro da madrugada e o breakfast deles é cerveja. Se você andar sozinha no navio, tá ferrada, porque eles tentam te agarrar.
Não é brincadeira não, outro dia estupraram e mataram uma mulher dentro de um navio desses.
Todo ano, é estatístico, seiscentos passageiros somem dentro desses navios. Somem mesmo. Não se sabe se ficaram nos portos onde o navio parou, se caíram do barco, se foram assassinados lá dentro...
Aí vocês vão perguntar: e não acontece nada com os responsáveis? Não, porque eles pertencem a uma grande multinacional. E esta, por sua vez, faz os navios navegarem com a bandeira de um desses países que não têm lei trabalhista nenhuma, e que jamais faria uma investigação séria sobre os tais cruzeiros. Você vai reclamar pro bispo.
Gente, que horror. A tal da globalização instaurou a lei da selva nesse planeta.

Também hoje chegou o Jens Schafer, um ficcionista alemão.

Outra fonte de histórias é a Stephanie. A menina é rodadíssima. Já morou na China e na Rússia e escreveu livros sobre esses lugares; mas pra mim a história mais interessante que ela contou se passou nos EUA.
Diz que as editoras aqui, principalmente as mais comerciais, vivem atrás da “next big thing”, ou seja, aquele jovem e talentoso escritor que vai fazer elas ganharem milhões. E aí começam a fazer como na Bolsa de Valores. Ficam inflando ações, digo, escritores, que não têm nenhum valor comprovado.
Exemplifico. A Stephanie nos contou a história de uma jovem escritora, aluna de uma grande universidade, que vendeu os direitos de seu próximo romance para uma editora, antes de ter escrito a coisa. Até aí nada de anormal, isso acontece até no Brasil. A novidade foi que essa menina:

a. ganhou um adiantamento de várias centenas de milhares de dólares;
b. tinha apenas uma idéia para a história, mais nada; mas seu professor na Universidade achava que a menina era um gênio.
c. tinha dezoito anos e nunca tinha escrito nada!

Claro que não foi capaz de cumprir o contrato.
Aí vocês dirão: coitada da editora, ficou micada. Mas de jeito nenhum! Venderam o pacote especulativo todo: a menina, mais a sua idéia, mais os direitos do livro, e do filme inspirado no livro, pra uma segunda editora, por uma fortuna. Final feliz pra eles.
Pois é, especulação também existe no mundo dos livros...

25 de setembro de 2006



As folhas das árvores estão fazendo seu último vôo rumo ao chão. É bonito de se ver. Daqui a pouco fica tudo vermelho e amarelo, mas não vou pegar essa parte...
Já comprei minha passagem de trem para Nova York.

Hoje a Brigid foi embora, que pena. Vou sentir a maior falta dela. Saiu antes da hora.
Com a Brigid e a Robin, estou vendo que nem sempre é fácil você sair do seu país e conviver com outros escritores - alguns dos quais, naturalmente, vão esnobar você. Elas se deixaram intimidar.
Cara, quando você está fora do seu país, tem que conhecer sua identidade cultural, saber de onde vem, e ter um bocado de auto-estima. Eu já cheguei aqui deixando bem claro que não me considero inferior a ninguém. E faço questão de falar sempre da literatura brasileira, dos grandes escritores tipo Guimarães Rosa etc.
Não é patriotada. É pra neguinho ficar esperto: demorou quinhentos anos pra fazer a Dóris Fleury.
Mas, em geral, brasileiro quando está fora do seu país assume o complexo de vira-lata, como diria o Nélson Rodrigues. (Hoje em dia a gente poderia chamar de “complexo de Manhattan Conection...”)É tão ridículo. Só falta pedir desculpas por existir.

terça-feira, setembro 19, 2006

12 de setembro de 2006



Acho que está na hora de fazer um apanhado dos meus coleguinhas escritores da Ledig House. Por exemplo, aqui tem:
- Eu – Eu.
- Brigid Lowry – O Furacão Neozelandês, que não pára de se mexer, falar e rir. Ocasionalmente tem um piti. Calorosa, simpática, escreve livros para adolescentes e atualmente está começando um sobre a arte de escrever.



- Mario Fortunato – Judeu italiano. Uma figura: baixinho, sempre de óculos escuros e écharpe no pescoço. Tem uma visão aguda da vida, da literatura e da política.








- Luis Moreno-Caballud – Espanhol, vive nos EUA. Fez trinta anos no sábado, mas tem cara de bebê. Está escrevendo uma novela interessantíssima: a história de um professor universitário encarregado de manter uma aluna na faculdade, custe o que custar. O pai dela faz generosas doações para a universidade. Mas a menina tem uma doença misteriosa, que ninguém sabe qual é...



- Armin Senser– Suíço de língua alemão, vive em Berlim e é a cara do Roberto Begnini. Cheio de atitudes, irônico, um tanto desagradável. Por exemplo: aqui, todo mundo ajuda a arrumar a casa. Coisinhas básicas: limpar os pratos, botar no lavador de louça, dar uma varridinha de vez em quando etc. Pois ontem à noite, o Armin olhou com aquela cara de europeu enjoado pra cozinha e disse: “A gente tem mesmo que limpar aí? Por que eles não arranjam logo uma vietnamita pra fazer isso?”.
Rá rá. Muito engraçado, Armin.
- Anzhelina Polonskaya – Russa filha de alemão, muito bonita, morou na América Latina, fala um espanhol perfeito e só conseguiu publicar seus poemas fora da Rússia. Diz que odeia a Rússia, odeia seus compatriotas, não se sente russa etc.
Fui dar uma olhada nos seus poemas. São lindos. Lindos poemas russos.
- Dragica Potocnjak – Figurinha carimbada! A Draga é eslovena nascida na Croácia. Dramaturga e atriz, como dá para perceber pelo seu porte elegante. Nas primeiras conversas com ela, fiquei achando que era maluca. Primeiro, o cunhado tinha morrido na guerra. Ta; isso é triste, mas crível. Depois, ela bateu com a cabeça no chão do palco e ficou 48 dias na cama sem se mexer! Aí um vizinho dela passou dezessete anos ameaçando-a de morte e mandando cartas assustadoras (não entendi muito bem. Será que ela demorou todo esse tempo pra descobrir que era o vizinho?).
E depois uma árvore caiu na sua cabeça, e ela ficou 53 dias na cama sem se mexer.
Mas, apesar de todas essas histórias cabulosas, a Draga parece funcionar sem problemas. Ela está tentando escrever ficção agora.
- Wei Hui – Ficcionista chinesa, tem um cabelão. Vive entre a China e Manhattan. Chegou ontem de Xangai, ainda está com jet-lag, mas já começou a trabalhar. Veio para o jantar com uma blusa chinesa de seda incrível, maravilhosa, de babar. Quando eu elogiei, disse que usava a tal blusa para trabalhar na colheita, em seu país.
Será o possível, meu Deus?

14 de setembro de 2006

Uma crise: acabou o vinho! Nos reunimos e discutimos o assunto; fazemos longas conjeturas sobre o problema. Ninguém chega a nenhuma conclusão.
- Mas o DW tinha comprado duas caixas de vinho no sábado, em Hudson! – lembra o Mario. - Não comprou, Bridges? Não comprou, Dóris?
- Comprou, me lembro bem.
- Não é possível que a gente tenha bebido tudo isso.
- Impossível – concorda o Luís, que, quietinho, quietinho, entorna umas seis taças por noite.
Todos concordamos que o vinho do DW deve estar estocado em algum lugar. Procura que procura. Abrimos todos os armários e arcas da casa. Olhamos no porão, onde ficam as máquinas de lavar roupa e a caldeira... Nada.
Chega o Mark, um grandão simpático que, junto com a mulher, Vicki, é uma espécie de “governante” da Ledig House (os dois são artistas plásticos, também). Mark, você sabe onde está o vinho do DW? Nope.
Entramos no carro para dar uma voltinha na cidade (de vez em quando enjôa ficar trancado no meio do mato com um monte de escritores). Uma horripilante suspeita se insinua em minha mente...
- Meu Deus, será que a gente bebeu todo o vinho? – pergunto.
Ruídos de incredulidade. Não. Imagina. Impossível...
Ou será que bebemos mesmo?
- De repente a gente bebeu – assume o Mario.
- Nossa! – digo. – Se for assim, o caso é grave!
O Mark dá uma risadinha:
- ‘Magina, os artistas são muito piores. (A organização também tem um programa de residência para artistas plásticos, a cerca de um quilômetro daqui). A gente vai botando cerveja no refrigerador, e não vence. Enche a geladeira, dali a meia hora ela já está vazia.
- Bom, ainda não estamos tão mal...
À tarde, chega um e-mail do DW, esclarecendo tudo. As duas caixas de vinho que ele comprou são para o fim-de-semana, e estão cuidadosamente guardadas em algum lugar por aqui. Durante a semana, se quisermos beber, temos que comprar nosso próprio vinho.
Voltamos da cidade com várias garrafas.

Hoje a Brigid trouxe pra mim a primeira folha do outono, bem vermelhinha...

15 de setembro de 2006

Escritor brasileiro sofre. Sofre em casa e também quando viaja, conversa com colegas de outros países e vê que a vida deles é cem vezes melhor. Como é duro ser subdesenvolvido!
Só pra começo de conversa. Temos aqui, além de mim, sete escritores, todos publicados, nenhum particularmente rico ou famoso. Mas, desses sete, segundo entendi, pelo menos quatro vivem só de literatura. No Brasil, quem vive de literatura?
Aqui, ninguém precisa correr atrás de editor. O agente faz isso por eles. Não faz isso porque tem bom coração e quer ajudar a Literatura; faz porque ganha uma bela percentagem. Nesses países, a indústria editorial é um grande negócio e movimenta muita grana. Os editores lançam grandes tiragens, com papel mais barato e preços acessíveis. Fazem campanhas de lançamento do livro, mandam o autor pra cá e pra lá... Em outras palavras: fazem livro pra todo mundo, pras pessoas que estão na rua.
Já no Brasil, os grandes editores preferem pensar que as pessoas não lêem porque são burras e ignorantes e ainda não perceberam o valor superior do livro.
Aliás, eles de fato devem achar que o livro tem um valor superior, porque cobram um absurdo por ele.
Aí você vê os escritores aqui da Ledig House falando: “Meu livro novo vai estar em Frankfurt”, “Meu agente me telefonou para contar que minhas peças vão ser publicadas na Holanda”, “Meu último livro entrou na lista de candidatos ao prêmio Tal”, e começa a ficar verde de inveja. Não é uma sensação nada legal.

Hoje caiu a conexão wireless... está todo mundo desesperado, como se estivéssemos isolados do mundo.
Sabe como é, eles têm que ver a capa do seu último livro, conversar com seu tradutor, e mandar textos para um editor que está louco pra publicá-los.
Um cansaço.

16 de setembro de 2006

Ontem tivemos um jantar caprichado aqui na Ledig House. Veio inclusive a cozinheira tailandesa, que fez pratos deliciosos. Tínhamos um convidado especial: o editor alemão Wolfgang Ferchl, que representa um dos patrocinadores da casa.
Só hoje de manhã fiquei sabendo que o homem também é editor do João Silvério Trevisan na Alemanha (Ana em Veneza).

Esteve também aqui um editor de Nova York e a mulher dele, interessantíssima, Judith Thurman. Escreve pro New Yorker, esteve na Flip de Parati há dois anos.
Essa mulher biografou um ídolo meu: a escritora francesa Colette. Também escreveu uma biografia de muito sucesso sobre Karen Blixen ou Isaak Dinesen (a escritora de Out of África). Mas o seu próximo projeto eu achei mais fascinante ainda. Ela quer biografar uma amiga sua que nunca foi famosa; uma mulher que se casou com um de seus primos e terminou se suicidando. Seu nome era Laura e ela era transexual.
Laura começou a vida como homem, e depois se tornou uma mulher absolutamente fascinante, linda, do tipo que deixa os homens babando. “Ela com certeza era mais mulher do que eu”, resume a Judith. Fez a operação de mudança de sexo, cem por cento bem-sucedida. E, alguns anos depois, se matou.
Parece que existe uma taxa altíssima de suicídios entre transexuais que fazem a famosa operação. Por quê? perguntei eu. Por acaso eles se arrependem? Não, respondeu a Judith, não é o caso de se arrepender. O problema é que passam a vida inteira sonhando com isso. Idealizam o dia em que finalmente não se sentirão mais presos num corpo de homem... Acham que ser mulher é a coisa mais maravilhosa do mundo, um estado superior do ser humano.
E aí se tornam mulheres (ou algo bem próximo), e descobrem que elas também têm problemas, angústias, desilusões amorosas etc.
Seja como for, essa mulher, a Laura, parece ter sido uma personalidade fascinante. Nunca foi à escola, vinha de uma família pobre de portorriquenhos, mas era muito inteligente. No seu enterro, um dos seus irmãos – um ex-Marine tatuado da cabeça aos pés – fez um discurso fúnebre maravilhoso, sem usar um só pronome pessoal. Nem “ele” nem “ela”.
A maioria das pessoas que estavam ali não sabia que Laura já tinha sido um homem.
O projeto me pareceu incrível, uma puta idéia. Até hoje não desisti de fazer jornalismo literário, que era meu sonho na faculdade... Um dia, quem sabe?

18 de setembro de 2006

Ontem o Luis foi embora, que pena – ele é uma gracinha de pessoa. À noite chegou o nosso novo pensionista, o Kjell Westö, poeta e ficcionista finlandês (o primeiro finlandês que conheço na minha vida).
Estávamos à mesa quando ele chegou. Aliás, a comida é um capítulo à parte aqui em Ledig House: nunca vi tanta, em toda minha vida. Nunca. Eles compram trezentas marcas de pão (a maioria integral, mas se quiser branco, tem), oitocentas de cereais, mil e oitocentas de iogurte, queijos de todos tipo (inclusive franceses, que são minha paixão), leite, chocolate, frutas, patê (americano adora homus, aquela pasta árabe de grão-de-bico), biscoitos, geléias, sucos... Tudo isso fica estocado numa enorme geladeira, e serve pro café-da-manhã e pro almoço.
Aí vem o jantar, às sete e meia. Cada dia tem um cozinheiro diferente, cada qual com seu estilo. A tailandesa com seus pratos exóticos; uma açoriana simpaticíssima, a Rita, que ontem nos ofereceu uma coisa muito parecida com pastéis de Santa Clara; um cara chamado Tommy, que faz uns rosbifes da hora...
Por mais que o pessoal consuma, sobra comida, e a gente fica se sentindo culpada... Outro dia estragou uma magnífica posta de salmão. É a velha história: quantas pessoas não têm nem o que comer, e nós aqui, deixando o salmão estragar!
E aí, pra resolver o problema da fome no mundo, você come feito um condenado.
Mas estou tentando maneirar... e comecei umas caminhadas pelos arredores. Senão, viro a Talentosa Escritora Brasileira Gorda.

terça-feira, setembro 12, 2006

7 de setembro de 2006


Vamos deixar uma coisa clara: eu não sou o tipo de maluca que liga desesperada pro terapeuta às dez horas da noite de um feriado.
- Gérson, não posso tomar esse remédio...
Eu sou o tipo de maluca que liga pro seu terapeuta às dez horas da noite de um feriado, mas só porque:
- ...diz aqui na bula que ele não pode ser usado com o meu remédio pra rinite.
(E também o tipo de maluca que sempre lê a bula.)
- Eu não sabia que você estava tomando remédio pra rinite – pondera meu bondoso terapeuta, que nem sequer me manda à merda.
- Mas você acha que tem algum problema? - pergunto, esperando que ele me diga: “que nada, isso é exagero do fabricante...”
- Acho que você NÃO deveria tomar esse remédio – ele responde. Assim, com caixa alta na partícula negativa.
- Ah... tá... brigada, desculpe incomodar – digo eu. Desligo o celular, olho à minha volta e engulo em seco.
Estou no portão de embarque 11 do Aeroporto de Cumbica, sozinha, desamparada, e vou ter de tomar um avião a seco. Sem tranqüilizante, remedinho, nem mesmo uma bebidinha.
Glup.
Duplo glup.
“Senhores passageiros do vôo 120 da Delta Airlines, com destino a Nova York...”

8 de setembro de 2006

A japonesa sentada ao meu lado é bem-educada: não ronca, não deixa a luzinha acesa, não fica tagarelando, não espalha farelos pela poltrona inteira. A japonesa sentada ao meu lado é o que se poderia chamar de uma ótima vizinha de avião. Mas, nesse momento, ela é também o principal empecilho à minha felicidade.
Estamos as duas numa fileira de três poltronas. Se a japonesa me fizesse a gentileza de desaparecer, eu seria uma pessoa feliz. Assim poderia estender meu pobre e cansado corpo na fileira de poltronas e descansar um pouquinho.
A menos que você seja anão, é rigorosamente impossível esticar as pernas num avião hoje em dia, pelo menos na posição sentada. Se não for um anão, então tem que ser rico -pra sentar naquelas belas e confortáveis poltronas da primeira classe.
E depois estranham que eu me revolte com a injustiça social.
Sorte que achei uns Lexotans no fundinho da bolsa. Foi o que me salvou. Sem o tranqüilizante poderoso que o Gérson tinha me prescrito, engoli duas pilulazinhas cor-de-rosa. Tinha tido um dia cansativo, estava podre... Não dormi, mas fiquei numa espécie de transe que melhorou bastante o pânico da decolagem.
Em algum momento do vôo, a japonesa desapareceu. Oba! Me estendi e quando acordei, só faltava uma hora para a aterrisagem.

Se vocês acham muito glamuroso ir pra Nova York, esperem até precisar andar VINTE quarteirões na Big Apple carregando um pesadíssimo laptop na bagagem. Junto com todas as tralhas que vieram juntas, o safado devia pesar uns dez quilos.
Demorei horas para achar a loja, descobrir que não tinham o modelo que eu precisava, ligar pro Brasil e pedir instruções, me explicar pro vendedor... E depois? Depois, nada. Tive que voltar pra Penn Station, onde tinha deixado a mala, porque estava cansada demais para fazer outra coisa. Fiquei sentada na sala de espera até a hora em que peguei o trem para Hudson, NY.
Mudanças em Nova York desde a última vez que estive aqui, há dez anos: um certo ar de paranóia na cidade. O noticiário dá calafrios, é só ameaça de bomba, último vídeo do Bin Laden (como diz o Zé Simão: esse cara não é terrorista, é videomaker!), furacão que vem pra Flórida, mais uma vez (mas eles não querem reconhecer o aquecimento global, acham que é coisa de ecologista de miolo mole), um maluco que raptou uma criança, etc.
Tem polícia e bombeiro que não acaba mais na rua, e os noticiários vão avisando que “Nova York ainda é um alvo preferencial de atentados!”. Tem a ver com o aniversário de cinco anos da queda das Torres Gêmeas, que acontece daqui a pouco tempo. Nesse clima, é interessante reavivar a paranóia.
Até porque, no fundo, todo paranóico tem um pouco de razão...
O novaiorquino é meio grosso pra te atender; eu ignoro a grossura e continuo na maior educação. O que me chamou a atenção dessa vez foi o número de pessoas que anda na rua grudada no seu celular, completamente fechada no seu mundinho digital, ignorando a realidade à sua volta. É muita gente, de todas as classes sociais. Mais do que no Brasil. Um troço meio autista.
Mas hoje faz um lindo dia de sol, as pessoas passeiam na rua, as meninas mandam ver nos decotões e exibem as pernas, aproveitando o final do verão. E tem homem bonito em Nova York sim senhor. A maioria, na minha opinião, crioulo. Cês precisam ver o rapaz que me levou no shuttle do aeroporto para Manhattan. A cara do Wesley Snipes.
Espetáculos, teatros, museus, consumo, muito verde, gente de todos os lugares do mundo... gente, o que eu queria dizer era o seguinte. Não sei no resto dos Estados Unidos. Mas aqui em NY, você só é infeliz se quiser.
E mesmo com a paranóia toda, as pessoas não me parecem especialmente infelizes.

Ledig House é uma instituição americana que se especializou em abrigar escritores por períodos de tempo de até dois meses. A sede fica em Ghent, no estado de Nova York, uma região linda, meio turística.
Tem um jeito fácil de explicar o que é Ledig House pros meus coleguinhas escritores. Imagine que você morreu e foi pro céu.
Aqui os escritores têm tranqüilidade e estrutura para escrever o dia inteiro.
Você faz rigorosamente o que quiser. Ninguém te interrompe. A campainha não toca. O telefone também não. Não tem criança pra cuidar, chefe pra obedecer, casa pra cuidar. Você tem um quarto só pra você, computador e Internet. Pintou fome? A cozinha está cheia de comida, é só ir lá pegar. E à noite rola um jantarzinho, com direito a vinho, e conversa com outros escritores. Tem gente de todo mundo: um suíço, um italiano, um espanhol, uma croata, e até uma neozelandesa, que é minha vizinha de quarto.
Gente... não dá pra explicar como estou feliz.
Se pelo menos minha Internet funcionasse!

10 de setembro de 2006

Algum milionário bondoso poderia fundar no Brasil uma instituição como a Ledig House.
Se você é escritor, sabe do que estou falando. O mais difícil, para nós, é conquistar respeito pelo nosso trabalho. Mesmo que as pessoas ao redor te dêem o maior apoio (o que é meu caso), escritor não é exatamente uma profissão. Ninguém pediu pra você escrever. Você não vai ganhar a vida com isso – vai ter de arranjar um emprego, e escrever nas horas vagas.
No Brasil então, o único que consegue ganhar dinheiro com literatura é o performático Paulo Coelho. Todo mundo morre de inveja. Mas, por outro lado, nenhum escritor sério quer ser o Paulo Coelho.
(Vejam bem, não estou argumentando aqui que o homem da capa preta não é escritor, como dizem alguns críticos. Ele é escritor. Só que é muito ruim. A discussão é simples, não tem complexidades).
E para piorar as coisas, existe uma certa esquisitice intrínseca à literatura, por assim dizer. As pessoas sabem disso. Quando vim para cá, minha mãe me desejou, por telefone:
- Boa viagem! E boa sorte nos seus, hã... bom... escritos.
O requisito mais importante para produzir literatura é a solidão e o isolamento, pelo menos algumas horas por dia. Sem distrações. Não deve ser nada divertido viver com escritor. Graças a Deus, não sou casada com um!
Mas aqui na Ledig House ninguém se importa se você se trancar várias horas por dia na frente de um computador... Ou se comer quando der na telha. Ou se não atender telefone e conversar com as pessoas apenas quando tiver vontade. Ou se de repente sair pra dar uma volta e clarear as idéias. Ou se passar a noite em claro.
Está tudo dentro do esperado.
Enfim, a literatura aqui é tratada como uma atividade perfeitamente respeitável, que tem certos requisitos que devem ser tolerados, por mais estranhos que sejam. Uma maravilha!
Já estou arrependida de ter pedido para ficar aqui apenas três semanas. Se eu pudesse passar alguns meses por ano na Ledig House, a essa altura já seria Joyce. Ou no mínimo Proust.

Ontem o DW levou eu e a Brigid Lowry, uma escritora neozelandesa, para passear nas cidadezinhas próximas. DW Gibson é uma espécie de diretor da Ledig House, passa três dias por semana aqui e providencia para que nada nos falte. Uma espécie de babá de escritor.
Sabe como é americano: quando é ruim, é péssimo. Mas quando é bom, é ótimo! Pacientes, tolerantes, razoáveis, práticos e com um saudável senso de humor. Todas essas qualidades os americanos podem ter, de uma maneira particularmente americana. E o DW é assim.
Então ele levou eu e a Brigid – o Furacão Brigid, que não pára de falar e se agitar um só minuto – para dar uma volta e comprar roupas, já que nós duas não trouxemos roupas para o calor. E aqui está fazendo algo em torno de 18 a 25 graus.
Acabamos num hipermegabrechó – escritor é pobre, e americano não tem a menor vergonha de usar roupa usada. O lugar era enorme e estava cheio, todo mundo aproveitando os preços ridículos (uma camiseta no máximo cinco dólares, uma sandalinha bárbara, três). Fiquei reparando nas pessoas – particularmente nas mulheres, que são sempre mais interessantes.
Ledig House fica entre duas cadeias de montanhas, as Berkshires e as Catskill. Estamos em plena terra dos ianques. Hoje, em dia, essa palavra é usada para designar qualquer americano; mas foi nessa região, ao norte da Costa Leste, que a palavra “ianque” se originou. “Yankee” é uma espécie de caipira do norte.
Com o onze de setembro chegando (está virando uma espécie de data nacional), a Main Street de Chattam, por onde passamos, estava coberta de bandeiras americanas.
O povo daqui não tem muita alternativa de sobrevivência: a agricultura é fraca, a indústria nunca foi grande coisa. O que sobrou foi o turismo, porque alguns novaiorquinos ricos gostam de passar as férias aqui.
Existe pobreza. Talvez não no nível ao qual estamos acostumados lá no Brasil. Mas muita gente está desempregada ou com empregos como esses: caixa do Wal Mart, garçonete, funcionária do megabrechó, ou “thrift store”. Mulheres brancas, principalmente.
É triste ver o que a pobreza e a falta de perspectiva fazem com as pessoas. Vão falar que elas estão ótimas, comparadas com as mulheres pobres do Brasil. Hummm.... sei não. Existem estudos mostrando que muitas dessas mulheres (boa parte, mães solteiras) não conseguem mais, de jeito nenhum, fechar as contas no fim do mês. Aí já viu, pegam dois, até três empregos, têm de deixar os filhos com vizinhos, ou trancados em casa... vocês já conhecem a toada.
São mulheres tristes. Têm aquele olhar desanimado de quem não espera mais nada da vida, aquela lentidão nos gestos, aquela aparência de desleixo. E são gordas. Não “gordinhas” ou “fofinhas”; muitas delas estão enormemente gordas. Chega naquele ponto em que a pessoa desanima completamente, não se arruma mais, usa aquelas roupas largadonas, sem graça...
Nova York está cheia de mulheres interessantes, de todas as raças, tamanhos e cores. Pensei até em fazer um ensaio fotográfico sobre elas: a latina empurrando seu bebê no carrinho, a executiva apressada falando no celular, os grupos de garotas rindo, pela rua, com aquela felicidade de quem obviamente matou aula...
Aqui, parece que as mulheres vêm em modelo único.
Já se falou muito sobre a epidemia de obesidade americana, mas a gordura não é democrática. Rico não fica gordo. Rico tem informação, médico, nutricionista e personal trainer. O “white trash” é que é grupo de risco pra tal epidemia.
Outro problema: a comida vêm em tamanhos absurdos aqui! E nada tem gosto de nada, impressionante, parece tudo de isopor. Ao contrário do que se imagina, comida ruim também engorda. Até porque a pessoa come um monte antes de se sentir satisfeita.
Mas que as tais mulheres parecem bem tristes, isso parecem...

Ontem chegou aqui uma escritora russa, toda gostosa.

11 de setembro de 2006

Pois é, gente: chegou o dia fatídico.
Hoje é 11 de setembro de 2006. Há exatamente cinco anos, eu estava em casa, em frente ao meu computador, escrevendo um e-mail pro Daniel, que tinha feito aniversário no dia anterior – aliás, feliz aniversário, Daniel! – quando meu marido ligou: “Liga agora na CNN”.
Liguei a TV e lá estavam as malditas torres em chamas...
Foi um dos piores choques da minha vida. Passei meses paralisada de medo e horror. O único jeito que encontrei de reagir foi escrevendo, escrevendo, escrevendo... E depois disso, é simples: o mundo piorou muito. O mundo realmente piorou.

Bom, cinco anos depois, aqui estamos nós, oito pessoas de várias nacionalidades, trancados uma fazenda ao norte do Estado de Nova York... escrevendo, escrevendo, escrevendo.
É o máximo que podemos fazer.

Onze de setembro, Guerra do Iraque, Bush: aqui em Ledig House, só se fala nesses assuntos obliquamente. Nunca de forma direta.
Mas não faltam papos-cabeça: afinal, o que se pode esperar de um bando de nerds das letras? E eu adoro conversar papo-cabeça sem ter ninguém pra me patrulhar.
Os papos-cabeça podem acontecer em qualquer lugar. Ontem, por exemplo, estávamos indo para Hudson no carro do DW, quando começou uma discussão sobre identidades nacionais. O Mario, um escritor italiano que está aqui, disse:
- Sabe de uma coisa? Estou cansado dessas conversas todas sobre identidade, nacionalidade etc. E das brigas, das guerras por causa disso. É claro que quero saber quem foram meus ancestrais (o Mário é judeu). Mas não quero viver pensando nisso! Veja na Itália: o que ia acontecer se lugares como San Marino ou Andorra declarassem a independência? Claro que eles têm uma identidade própria. Mas pelo amor de Deus, San Marino tem três mil habitantes! Não sobrevive sozinho. Chega um ponto em que fica ridículo. Não existe nenhum país da Europa que não tenha várias identidades nacionais dentro dele. Mas será que a melhor idéia é se separar, arranjar uma moeda própria, um hino, e começar uma guerra com o vizinho do outro lado da rua? Quer saber, eu acho isso ridículo. Se a arte tem alguma função nesse mundo, é de transcender esse tipo de coisa, de achar o universal no homem.
- Também acho a mesma coisa, Mário – digo eu.
Silêncio no carro.
- Bom – diz, com um suspiro, a Draga, uma atriz e autora de peças – não vou nem começar a discutir esse assunto, Mário. Você não entenderia.
A Draga é eslovena. Mas nasceu na Croácia...

quarta-feira, setembro 06, 2006

A FASCINANTE JORNADA DE CARLA MARGHERITA RUMO AO CENTRO DO UNIVERSO

Dóris Fleury

Com nome de pizza napolitana,
e maquiagem verde nos olhos,
Carla Margherita pratica na tradicional Rua Augusta,
a mais tradicional das profissões.
Percorre a calçada de minissaia
mostrando suas pernas quilométricas
e vestida em sua cor predileta:
amarelo-ovo.
Mas nem sempre foi assim.
Carla Margherita já teve casa no interior.
Dentro da casa, moravam um homem (seu marido)
e duas crianças (seus filhos).
Carla Margherita era esposa e mãe exemplar.
Aliás, exemplar sempre foi. Desde pequena
Seus pais diziam, essa menina
É um modelo. Modelo não de top model, não!
Modelo de garota comportada, ajuizada, obediente
A preferida das freiras do colégio
Da titia e da vovó.

Carla Margherita recebeu a melhor educação,
E também muita repressão.
Mamãe explicou que moça direita
Não faz certas coisas.
A não ser, é claro
Depois de casar.
Mas Carla Margherita cresceu
E ouviu coisas diferentes.
Todo mundo dava.
E o namorado a chamava de reprimida.
E aí achou que talvez devesse dar.
Já ouviram falar de prova de amor? então,
Carla Margherita deu
A prova de amor.

E engravidou.

Pobre Carla...
Teve que casar
E deixou todo mundo chateado,
Inclusive as freiras, a titia e a vovó.
Seu futuro brilhante - disseram
estava arruinado.
Carla Margherita não queria decepcionar ninguém.
Nem a família, nem o esposo, que logo descobriu
Ser um tremendo babaca, do tipo que só curte
Cerveja, sofá e televisão.
Fazer o quê? Foi à luta.
Estudou à noite, com muito sacrifício.
Deixava o filho na casa da mãe, que dizia
Você apronta, e eu seguro o rojão!
A Carla sorria amarelo...
E saía de fininho no seu Gol,.

Depois Carla arranjou um emprego
De funcionária pública, tadinha.
O chefe a enchia de serviço - e promoção, nem pensar.
E Carla descobriu as alegrias da dupla jornada...
Mesmo assim ela se esforçava,
Pra ser uma mulher modelar.
Por exemplo: se o filho pedia brinquedo,
Ela corria pra comprar.
Tadinho do menino, né? o dia inteiro sem a mãe, e nem ganha presente?
Com uma infância tão triste - pensava Carla - mais tarde ele vai se revoltar.
Chegava em casa às seis,
Fazia o jantar, dava banho nos filhos
E ainda recebia a sogra
Que vinha pra criticar.
Ela dizia que Carla Margherita
arruinara a vida do seu filhinho!
E o filhinho, esparramado no sofá,
parecia concordar.

Outra preocupação de Carla: conservar a estética,
A beleza, a aparência, a linha, essas coisas,
pro marido não reclamar.
E olhem que era um mulherão!
Lia todas as dicas de sexo da "Nova"
Mas ficava um pouco confusa:
Uma matéria mandava tomar a iniciativa,
Outra dizia pra ser recatada...
Senão o cara se assusta.

A família a essa altura já reconhecera,
Que Carla tinha um grande coração,
Pois cuidava dos pais quase sozinha
Lembrava do aniversário da sobrinha,
E aos domingos, adivinha,
Quem fazia a lasanha da mama?
Era a Carla.

Era sempre a Carla.

A Carla ia ao banco,
A Carla levava o cachorro pra passear,
A Carla chamava o encanador,
A Carla ia visitar a titia e a vovó no hospital
A Carla ia à reunião da escola
A Carla levava as crianças pras festas,
A Carla tirava segunda via, comprava, lavava, esfregava, varria, ajeitava, cuidava, trabalhava, ouvia bronca do chefe...
(E a tal promoção, nem pensar).
E à noite - olha só - a Carla ainda tinha que trepar!

Foi num dia em que a enceradeira quebrou,
O cachorro ficou com virose,
O filho trouxe um boletim medonho
O chefe mandou fazer hora extra
A irmã folgada brigou com o cunhado
E veio se instalar na sua casa
Bom, pessoal, foi nesse dia
Que a Carlinha surtou.

Carla Margherita levou todas as malas.
Não deixou nem mochila pro marido
Nem bilhete
Nenhuma explicação.
Claro que depois alguém descobriu,
O seu endereço e sua nova profissão.
Uma comissão da família foi formada,
Pra salvar a honra da Carla Margherita.
Mas ela mandou o pessoal lamber sabão.

Eu não sei porque a Carla tomou uma atitude tão precipitada
Assim tão irracional,
Eu diria até meio drástica,
Vocês não acham não?
Mas pelo menos hoje ela é feliz

Carla Margherita sempre sonhou em dormir até tarde,
Sem ouvir o maldito despertador...
Hoje dorme quanto quer.
Carla Margherita nunca mais vai lavar tapete,
Nem ouvir conversa da sogra.
Nem passear cachorro,
Nem fazer bolo pra vovó e pra titia.
Tudo isso acabou!

Mas...

Ultimamente, ali na Fernando de Albuquerque,
as meninas andaram pensando
Em fundar uma associação
Pra defender os direitos
Das trabalhadoras do sexo,
Sacou?
E Carla já se comprometeu:
Vai ser presidente honorária
Distribuir panfletos,
Falar com a imprensa
E marcar as reuniões.
No dia da primeira, aliás, as meninas,
Encerraram a conversa agradecendo,
A gentil participação da presidente,
E o cafezinho, que francamente,
Estava uma delícia!
E Carla, muito modesta,
Abaixou os olhos
E sorriu.

terça-feira, agosto 29, 2006

QUANDO DEUS FALOU COM PAULO


Dóris Fleury

Quarta-feira passada estive no lançamento de Caim, novo livro da Márcia Denser. Voltei pra casa toda contente com ele debaixo do braço; estou guardando o danado como quem guarda chocolate pra sobremesa.
Sou fã dessa escritora por várias razões. E uma delas vai parecer estranha: Márcia Denser leu a Bíblia (além de Faulkner, é claro). É mais uma escriba que se inspirou nos relatos, na linguagem poética e nos mitos bíblicos.
Não acredito em escritor que não leu a Bíblia. Na cultura em que vivemos, é impossível escrever sem essa referência. Claro que existem outras fontes importantes, como a mitologia grega. Mas só com a Bíblia já dá pra se virar bem razoável.
Portanto, olha a contradição: eu, atéia convicta, acho que todo escritor tem que ler a Bíblia. Vou mais longe ainda: é recomendável que se leia a Bíblia antes de ler o Bukowski... (Não sei se essa idéia parece muito ousada. Algumas pessoas podem se chocar com ela.)
Minhas passagens prediletas da Bíblia estão no Novo Testamento. O Velho Testamento têm histórias fantásticas, mas filosoficamente não dá pra levar a sério. Deus, nesses livros, é um sujeito terrível, mau, vingativo. Vejam, por exemplo, a atitude d’Ele na própria história de Caim e Abel: os dois sacrificavam a Deus, mas os sacrifícios de Caim "não agradaram" o Todo Poderoso. Não agradaram por quê? Ele não gostou da marca do incenso? O carneiro 'tava duro? Vai saber. O Deus do Velho Testamento é assim: caprichoso, arbitrário, imprevisível.
Já o Deus do Evangelho tem mais coerência. Simpatizo com várias coisas que Ele diz através do Seu filho. O Sermão da Montanha, por exemplo: as imagens são bárbaras. E grana e bens materiais são mesmo uma merda, corrompem etc. Jesus é radical pra caramba, um figuraço: entra no templo e expulsa os vendilhões de chicotinho em punho. Anda pela Galiléia com um bando de pescadores pobres e ferrados. Diz que é mais fácil passar um camelo numa agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Etc.
Simpatizo até com as passagens que nos parecem mais difíceis de digerir - como a história de oferecer a outra face aos inimigos.
Nossa primeira reação, quando ouvimos essa frase, é de estranheza e até de revolta: eu, hein? Mas considerem: a filosofia anterior era “olho por olho, dente por dente”. É isso que continua valendo até hoje; e vejam em que bela merda de mundo estamos!
Não deu certo, gente. O olho por olho, definitivamente, não deu certo.
Vai ver então Jesus estava certo. E talvez o "dar a outra face" fosse, mais do que uma proposta concreta, a imagem de um ideal a ser alcançado. A mensagem é simples: perdoe. E, se não puder perdoar, pelo menos não se vingue. Ninguém fica feliz com a vingança.
Eu sei que essa filosofia está fora de moda. Afinal, vivemos num mundo que parece ter roteiro escrito pelo Quentin Tarantino. Mas repito: não está dando certo.
Há outro momento do Novo Testamento que sempre me encantou. Meu pai gostava de contar essa história. É sobre Saulo, um judeu que perseguia os primeiros cristãos, judeus como ele. Entrava em suas casas, prendia, matava, barbarizava, sem o mínimo remorso. Nem sabia porque fazia aquilo. Aí, um dia, na estrada para Damasco (essa mesma Damasco milenar, que os americanos hoje querem invadir), Deus atingiu Saulo com uma luz fulminante. Ele ficou cego e caiu do cavalo. E foi então que o Senhor falou:
- Saulo, Saulo, por que me persegues?
Saulo - depois rebatizado como Paulo - é uma das poucas personagens do Novo Testamento que efetivamente falou com Deus. E olhem que coisa curiosa: Deus não o ameaçou, nem lhe deu uma ordem, nem sequer fez um sermão. Limitou-se a fazer uma pergunta cheia de angústia. É o Deus mais humano que a gente vê em toda Bíblia. Um Deus que poderia ter dito algo assim:
"Por que me persegues, se sou de carne e osso como tu? Por que me persegues, se nem me conheces, se nunca sentaste à minha mesa nem partilhaste do meu pão? Por que me persegues, se não te fiz nada de mal? Por que matas mulheres e crianças inocentes, que nem sequer entendem o que é a guerra? Por que destróis as nossas casas? Por que bombardeias nossas cidades? Por que arranjas pretextos fúteis para nos massacrar? Não imaginas nunca, nem por um só momento, que também sintamos dor e tristeza como tu? Por que teus generais se reúnem para planejar mais morte, mais guerra, mais destruição? Por que continuas uma guerra que só gera ódio? Por que não podemos sentar juntos e conversar como seres humanos, iguais que somos, unidos pela mesma sede de infinito e pelo mesmo destino mortal? Por que me persegues?"
Talvez, naquele momento, Paulo tenha sentido o que os psicanalistas chamam de insight - uma súbita e nova compreensão dos fatos. Uma percepção tão forte, tão devastadora, que ficou cego por um bom tempo.
É verdade que depois ele se tornou um santo ranheta, moralista etc. Não gostava de mulheres e detestava homossexuais. Foi um dos fundadores da Igreja Católica - o que não recomenda ninguém. Mas pelo menos parou de matar gente.
E isso - digam vocês o que quiserem - é sempre um progresso.