sexta-feira, fevereiro 17, 2006

AGORA É A VEZ DA THATY

Bom, pessoal, continuo agitando o blog. Vários problemas - um calor da porra, por exemplo. Teclado novo, não consigro me acostumar. E um monte de serviço acumulado, que não termino porque fico blogando! Gente, que calor. E olha que eu gosto de calor! Desço (meu escritório fica no segundo andar aqui de casa) pra ver se tem alguma coisa gelada pra beber. Só água. Tenha a santa paciência. Eu gostaria de virar pingüim e ir morar na Antártida. Ou no mínimo ter uma cerva da Antárctica. A coisa tá feia. Meus pensamentos suam. Impossível sair de casa. Impossível ficar em casa. Ah! É você, Thaty! Que bom que chegou. A Thaty faz parte do Literatura Corporal, uma lista da qual eu e o Paulo também participamos. Ela escreveu um continho da hora! Ou crônica. O Vinícius aí embaixo acha que crônica não é literatura. Mas também o Vinícius é um tremendo esnobe. Sexta-feira ele veio aqui em casa e esnobou todos os meus livros, todos, todos. Disse que era tudo porlcria. Digo, porcariaz. Maldito teclado. Maldito calor. Mas pelo menos tem o conto legal da Thaty.

OS CAMINHOS DA FÉ

Thaty Marcondes

Ela era séria. Ficava rubra quando havia qualquer nuance de assunto apimentado no ar. Sempre fora assim. Desde cedo. Fora de moda, sem
vaidade, terço e missal na mão, rezando pelos cantos, não perdia a
missa. Saia cobrindo os joelhos, blusa de manga, fechadinha no
decote. Nunca se pintou. Cabelos longos, presos com fivela. A
própria "boko-moko", como se dizia na época. Morava na capital. A
única, entre as primas, todas morando no interior, no meio do nada.
Mas até elas – as primas – eram mais avançadinhas e modernas do que
Celina. Vestidinhos curtos, cabelos repicados, roupa colorida, calça
saint tropez, calcinha biquini. Queimaram sutiã. Nada que as
prendesse. O que é bonito tem que ser mostrado – esse era o lema.
Quando as primas chegavam Celina tinha vontade de sumir. Não
suportava aquelas conversas de beijinhos e passadinhas de mão. Por
anos a fio ela aguentou aquele verdadeiro calvário. Rezava pela
purificação das primas. Que Deus tivesse piedade daquelas pobres
pecadoras. Ignorantes! Caipiras consumistas de falsas modernidades,
que só serviam pra desviar o espírito da casa de Deus. Depois dos 15,
quando as primas chegavam, não a encontravam: estava em retiro
espiritual, longe das tentações.

Ele também era estranho. Sempre circunspecto, olhar cabisbaixo,
repleto de livros sobre esoterismo, fórmulas metafísicas, físicas,
biológicas, químicas. Até Lobsang Rampa era leitura interessante.
Procurava uma interpretação lógica pro universo. Óculos grossos, tão
míope o coitado, cabelos compridos e engordurados, camiseta de
algodão esburacada, calça jeans rasgada, sandálias de pneu.
Vegetariano. Afinal, a vaca era sagrada desde a Índia, berço da
civilização. Mas não era hippie. Não tinha tribo. Não falava:
grunhia. Sempre com um livro baixo dos braços fedendo a suor, que era
contra desodorante – coisa de americano, de filhinho de papai –.
Queria ganhar o mundo. Conhecer o Egito, a China; ver de perto o Mar
Morto, o Sahara; escalar o Himalaia, batismo no Ganges, encontrar
Shangri-lá. Magro, franzino, curvado, sem cor. Curtia uma erva da
boa, sozinho, desde que o barato o levasse a viajar por terras
estranhas, novas descobertas transcendentais, residentes no arquétipo
do mundo, registradas no Livro Akáshico. Mil viagens fora do corpo,
era íntimo do seu cordão de prata, ainda faria cirurgia pra abrir o
terceiro olho, após o jejum nas cavernas sagradas do Tibet.

O futuro dos dois? Ela seria freira, esposa de Cristo, sem pecados.
Ele encontraria o Uno, a razão, a fonte divina. Nenhum dos dois
envergaria pelos caminhos dos pecados da carne. Puros, limpos, sem
máculas terrestres.

Algo aconteceu no meio do caminho dos dois. As alamedas se cruzaram.
Instantes, segundos, fragmentos do tempo, em que seus olhares se auto-
hipnotizaram, um pelo outro. Deram-se as mãos, desceram do ônibus
lotado de mãos dadas, sem despregar os olhos um do outro. Ele
encontrara Ísis, ela encontrara Deus. Montaram uma sociedade
alternativa, uma nova seita, instalada numa fazenda comprada com
dinheiro dos fiéis pagantes do dízimo sagrado. São Adão e Eva da nova
raça. Adoradores do Raul, no seu baú reescreveram o Kama Sutra.

Thaty Marcondes, por ela mesma:
Mãe de futuro jornalista, filha torturada de mãe dominadora, viúva vivendo em pecado estável com o cara-pálida-metade, dona-de-casa enlouquecida nas horas vagas. Delinquente literária, comete absurdos contra as letras e linhas que massacra. Nunca ganhou nenhum concurso importante, não cumpre prazos, dorme tarde e acorda ao meio dia.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006


A CELA

Jean Canesqui

Certa vez, prenderam-me numa cela.
Sem luz. Sem janelas.
Jogaram-me lá para ser esquecido.
Tanta era a treva, que quando fecharam a porta, seu desenho retangular desapareceu.
Surgiram paredes, barreiras, muralhas de escuro consistente e frígido, que nas horas se desfizeram e não eram mais paredes.
Era nada.
Palpável só o chão, pelo qual eu podia, parecia, caminhar muito além do metro quadrado de meu claustro.
Sem espaço.Sem tempo.
Desfiguraram-se os dias.
Ou os anos?
O fato é que conseguiram seu fim.
Não só me esqueceram, como também eu me esqueci.
Um dia, isso eu sei, abrirão a porta perdida, a mesma que sumiu quando a trancaram, olharão para dentro e não encontrarão ninguém.