terça-feira, agosto 29, 2006

QUANDO DEUS FALOU COM PAULO


Dóris Fleury

Quarta-feira passada estive no lançamento de Caim, novo livro da Márcia Denser. Voltei pra casa toda contente com ele debaixo do braço; estou guardando o danado como quem guarda chocolate pra sobremesa.
Sou fã dessa escritora por várias razões. E uma delas vai parecer estranha: Márcia Denser leu a Bíblia (além de Faulkner, é claro). É mais uma escriba que se inspirou nos relatos, na linguagem poética e nos mitos bíblicos.
Não acredito em escritor que não leu a Bíblia. Na cultura em que vivemos, é impossível escrever sem essa referência. Claro que existem outras fontes importantes, como a mitologia grega. Mas só com a Bíblia já dá pra se virar bem razoável.
Portanto, olha a contradição: eu, atéia convicta, acho que todo escritor tem que ler a Bíblia. Vou mais longe ainda: é recomendável que se leia a Bíblia antes de ler o Bukowski... (Não sei se essa idéia parece muito ousada. Algumas pessoas podem se chocar com ela.)
Minhas passagens prediletas da Bíblia estão no Novo Testamento. O Velho Testamento têm histórias fantásticas, mas filosoficamente não dá pra levar a sério. Deus, nesses livros, é um sujeito terrível, mau, vingativo. Vejam, por exemplo, a atitude d’Ele na própria história de Caim e Abel: os dois sacrificavam a Deus, mas os sacrifícios de Caim "não agradaram" o Todo Poderoso. Não agradaram por quê? Ele não gostou da marca do incenso? O carneiro 'tava duro? Vai saber. O Deus do Velho Testamento é assim: caprichoso, arbitrário, imprevisível.
Já o Deus do Evangelho tem mais coerência. Simpatizo com várias coisas que Ele diz através do Seu filho. O Sermão da Montanha, por exemplo: as imagens são bárbaras. E grana e bens materiais são mesmo uma merda, corrompem etc. Jesus é radical pra caramba, um figuraço: entra no templo e expulsa os vendilhões de chicotinho em punho. Anda pela Galiléia com um bando de pescadores pobres e ferrados. Diz que é mais fácil passar um camelo numa agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Etc.
Simpatizo até com as passagens que nos parecem mais difíceis de digerir - como a história de oferecer a outra face aos inimigos.
Nossa primeira reação, quando ouvimos essa frase, é de estranheza e até de revolta: eu, hein? Mas considerem: a filosofia anterior era “olho por olho, dente por dente”. É isso que continua valendo até hoje; e vejam em que bela merda de mundo estamos!
Não deu certo, gente. O olho por olho, definitivamente, não deu certo.
Vai ver então Jesus estava certo. E talvez o "dar a outra face" fosse, mais do que uma proposta concreta, a imagem de um ideal a ser alcançado. A mensagem é simples: perdoe. E, se não puder perdoar, pelo menos não se vingue. Ninguém fica feliz com a vingança.
Eu sei que essa filosofia está fora de moda. Afinal, vivemos num mundo que parece ter roteiro escrito pelo Quentin Tarantino. Mas repito: não está dando certo.
Há outro momento do Novo Testamento que sempre me encantou. Meu pai gostava de contar essa história. É sobre Saulo, um judeu que perseguia os primeiros cristãos, judeus como ele. Entrava em suas casas, prendia, matava, barbarizava, sem o mínimo remorso. Nem sabia porque fazia aquilo. Aí, um dia, na estrada para Damasco (essa mesma Damasco milenar, que os americanos hoje querem invadir), Deus atingiu Saulo com uma luz fulminante. Ele ficou cego e caiu do cavalo. E foi então que o Senhor falou:
- Saulo, Saulo, por que me persegues?
Saulo - depois rebatizado como Paulo - é uma das poucas personagens do Novo Testamento que efetivamente falou com Deus. E olhem que coisa curiosa: Deus não o ameaçou, nem lhe deu uma ordem, nem sequer fez um sermão. Limitou-se a fazer uma pergunta cheia de angústia. É o Deus mais humano que a gente vê em toda Bíblia. Um Deus que poderia ter dito algo assim:
"Por que me persegues, se sou de carne e osso como tu? Por que me persegues, se nem me conheces, se nunca sentaste à minha mesa nem partilhaste do meu pão? Por que me persegues, se não te fiz nada de mal? Por que matas mulheres e crianças inocentes, que nem sequer entendem o que é a guerra? Por que destróis as nossas casas? Por que bombardeias nossas cidades? Por que arranjas pretextos fúteis para nos massacrar? Não imaginas nunca, nem por um só momento, que também sintamos dor e tristeza como tu? Por que teus generais se reúnem para planejar mais morte, mais guerra, mais destruição? Por que continuas uma guerra que só gera ódio? Por que não podemos sentar juntos e conversar como seres humanos, iguais que somos, unidos pela mesma sede de infinito e pelo mesmo destino mortal? Por que me persegues?"
Talvez, naquele momento, Paulo tenha sentido o que os psicanalistas chamam de insight - uma súbita e nova compreensão dos fatos. Uma percepção tão forte, tão devastadora, que ficou cego por um bom tempo.
É verdade que depois ele se tornou um santo ranheta, moralista etc. Não gostava de mulheres e detestava homossexuais. Foi um dos fundadores da Igreja Católica - o que não recomenda ninguém. Mas pelo menos parou de matar gente.
E isso - digam vocês o que quiserem - é sempre um progresso.