terça-feira, maio 01, 2007

MAMET & AS MÃES



David Mamet, no livro "Os três usos da faca", diz que o ser humano tem uma tendência natural a dramatizar. Por exemplo, dizemos: “Fiquei três horas esperando o ônibus!”, quando é óbvio que ninguém fica três horas no ponto, vai embora antes. Mas a mente humana adora um drama.
E isso que ele não conheceu minha mãe, que diz assim:
- Um dia vocês vão se arrepender, mas aí vai ser tarde demais, porque eu já vou estar morta, estendida num caixão!
Embora, como dramaturga, eu ainda prefira a mãe de um amigo meu, que tem essa tirada:
- Dia desses eu saio pela rua feito uma louca, e vocês nunca mais vão ouvir falar de mim!

O UISQUINHO DAS CRIANÇAS



Gabriel, 11 anos, chega ao restaurante com a família toda. Concentra-se no cardápio, procurando o que beber. Até que vira pro meu irmão e aponta, triunfante:
- Pai, olha só que legal! Aqui tem uísque pra doze anos!
Todo mundo cai na gargalhada, e ele fica furioso.

ETIQUETA


Uma amiga minha foi convidada prum jantar chiquérrimo, em hotel cinco estrelas. Era pra ser um programão, virou uma tortura:
- Cheguei lá, tinha uma lagosta inteira, e uns trezentos talheres que eu não sabia usar.
Confessamos que também não sabíamos.
- Mas numa hora dessas a gente improvisa... Só não vale desprezar a lagosta!
- Pois eu não consegui de jeito nenhum.
Nessa hora todo mundo tem sugestões:
- Por que você não chamou o maître?
- Por que não foi logo cortando o bicho com a faca mais afiada?
- Por que não perguntou pra alguém como é que fazia?
Pressionada de todos os lados, minha amiga confessou:
- Foi um horror. Fiquei lá, com cara de idiota, segurando aqueles malditos talheres, fingindo que não via a lagosta, e a lagosta olhando pra mim desesperada! Não deu, gente. Não deu.

CONVERSA NO SUMARÉ




O guardinha comenta com a empregada que varre a calçada:
- Mais um dia de sol que Deus dá pra gente! Ninguém dá valor, mas isso é importante, né?
- Ah, é importante sim. Nem me diga! – concorda a empregada.
Pausa.
- E nós nem merece – conclui o guardinha.

terça-feira, abril 17, 2007

LOUQUINHOS DO RIO PEQUENO


Se tem um artigo que nunca vai estar em falta nesse mundo, é louco. E não louco dessa loucura normal da gente (a mais perigosa), mas louco mesmo, pinel, tantã, doidinho, esquizofrênico, surtado.
Tem aqueles que saem atirando em todo mundo – como é o caso do cara que matou 32 pessoas numa universidade americana, esta semana. Mas qualquer pessoa que ande pelas ruas de São Paulo sabe que loucos agressivos e perigosos são raros. A maioria é mansa, não faz mal a ninguém. E alguns, inegavelmente, não deixam de ser engraçados.
Minha filha freqüenta o Rio Pequeno, e outro dia estava me contando dos malucos do bairro: figurinhas carimbadas, que todo mundo conhece. Precisavam de tratamento, coitados; mas além de loucos, deram o azar de nascer pobres. E é por isso que a gente pode ver nesse bairro da Zona Oeste gente como:

Bacalhau – Esse é o mais famoso, tem até comunidade no Orkut. O Bacalhau xinga todo mundo. Bastou passar por ele que o homem solta um monte de palavrões cabeludos, com a sua inconfundível voz grossa. Vai você andando belo e formoso pelo Rio Pequeno e pronto, o Bacalhau salta na sua frente e diz: “O dono da padaria é corno, e a mulher dele é vagabunda!”. Você leva o maior susto, mas depois começa a rir.
Coitado do Bacalhau. Diz que ficou assim por causa das drogas.

A um real – Velhinha que circula pelo bairro sempre levando uma boneca debaixo do braço. E com os peitos de fora.

Poeta – O alienado mais obediente do planeta. Tudo que você manda, ele faz. Mas o que os engraçadinhos de plantão mais gostam é de lhe pedir um poema. Poeta, então, imediatamente recita versos inéditos – e sem o menor sentido.

Papapá – Tem um jeito infalível de zoar com o coitado. É só chamar ele de Papapá. O cara fica furioso.

Homem-vírgula – É de fundir a cuca de qualquer ortopedista: o Homem-Vírgula é um sujeito que tem toda a parte superior do tronco curvada para trás. Daí o apelido. Também essa vírgula é sua única forma de expressão: ele não fala com ninguém.

STALIN


Estou lendo uma biografia chamada "Stalin – a corte do czar vermelho", que é de arrepiar os cabelos. Eu já sabia que o cara era um dos maiores carniceiros da História - pior até que Hitler, segundo alguns. Que matou e deportou milhões de pessoas. Que não poupou nem mesmo os próprios companheiros de Partido, velhos amigos do Partido Bolchevique. E também li os costumeiros psicologismos: ele era louco, paranóico, doente etc.
Aí chega a tal biografia, escrita por um historiador muito competente, Simon Sebag Montefiore. Montefiore pesquisou fontes inéditas. E apresenta um Stalin cem por cento normal. Poderia ser seu primo, seu vizinho, seu amigo de colégio... Uma simpatia de pessoa. Muito culto, adorava literatura. Mulherengo, é verdade. Mas pai dedicado, marido razoável e amigo fiel... até o momento em que mandava seus chapinhas pro pelotão de fuzilamento.
Mas isso, como diria o Dom Corleone, eram negócios.
O terror que ele promoveu na URSS não era função da sua loucura ou da sua paranóia; era uma estratégia política para lhe assegurar o poder absoluto. E quem não quer o poder absoluto?
Quando a gente vê aqueles filmes do Hitler, fica com a impressão (reconfortante, né?) de que o cara era, no mínimo, meio estranho: tinha um olhar fixo, um ar amalucado... Ufa, que alívio, era um louco. E o Stalin?
Ora, o Camarada Stalin era um sujeito legal. No mundo capitalista, provavelmente seria um executivo de sucesso, desses que não pensam duas vezes antes de fazer um "downsizing", mandar um monte de gente pra rua e ser promovido pela façanha.

CONCLUSÃO

Portanto, vivemos no seguinte mundo: o Bacalhau, o Homem-Vírgula e o Poeta são loucos, casos psiquiátricos. E o Camarada Stálin é um sujeito perfeitamente são.

domingo, abril 15, 2007

HÉRCULES


Hércules de Souza é dono de uma academia em Pirituba, a Sports Action. Malha oito a dez horas por dia e só então volta pra casa, onde mora com a mãe, D. Alcmena. O marido de Dona Alcmena se mandou há anos. Há quem diga, no bairro, que Hércules não é seu filho. O fato é que ela vive reclamando da vida. E o filho, tomando bomba. Ficou enorme, mal consegue andar de tanto músculo. Hércules recebe o diagnóstico de câncer no fígado no mesmo dia em que vai disputar o Cinturão de Ouro do Fisioculturismo. Sai do consultório do médico e vai direto para o Ginásio do Ibirapuera - não sem antes engolir mais um suplemento envenenado.

NINFAS



Quem disse que não existem coisas boas na vida? eu, por exemplo, passo horas aqui, neste grande jardim, esperando que elas passem. Elas são dezenas. Louras, morenas ou ruivas. Algumas não me notam, outras me reconhecem; até me dão um discreto sorriso. Não peço mais que isso. Me satisfaço em contemplá-las na corrida, de passagem. Noto a graça de um tornozelo, a curva sinuosa de um ventre, o relevo voluptuoso de um seio... Elas não gostam muito do sol aberto. Às nove da manhã, vão rareando. É então que levanto do meu banco com um suspiro, e me dirijo aos portões do Ibirapuera. Mas encontro ainda, no caminho, uma ou outra ninfa corredora, de tênis e abrigo, fazendo seu cooper.

segunda-feira, abril 09, 2007

ULYSSES



Não é mentira não, na Heliópolis todo mundo sabe: Ulysses, dono da maior boca-de-fumo do pedaço, foi embora há vinte anos e nunca mais deu notícia. Penélope, a patroa, ficou segurando o rojão até hoje. Mulher valente, não pensa duas vezes pra despachar a concorrência com seu três-oitão. E é ponta firme a Dona Penélope, paga todo mundo em dia: do avião à polícia. Tá assim de malaco querendo casar com ela. Ultimamente até apareceu um dizendo que é o Ulysses, vê se é possível. A Penélope falou que tá esperando o cara. Ela, e seu três-oitão.

MERCÚRIO




Mercúrio morreu na terça-feira, quando voava mais rápido que o raio numa avenida da cidade. Amigos e parentes compareceram ao Cemitério da Quarta Parada para enterrar o rapaz. Da moto não sobrou grande coisa. Dele mesmo, também não. Ficou tudo espalhado no asfalto: parafusos, porcas, sangue, massa cinzenta, óleo. Mas os órgãos - diz o hospital- ainda se aproveitam. Os clientes vão sentir falta de Mercúrio: pediam sempre por ele, na hora de entregar os envelopes mais urgentes. Sabiam que Mercúrio, o motoboy, não corria. Voava.

PERSÉFONE



Perséfone é casada com um fazendeiro rico do Mato Grosso. Ela é linda, mas só passa metade do ano com o marido. Acordo do casal. Quando chega a estação das chuvas, Peerséfone viaja pra São Paulo. Aqui, ninguém sabe o que faz: se vai pra balada, se torra dinheiro na Oscar Freire ou se tem amantes. Mas lá no Mato Grosso, quando chega a estação da chuva, o fazendeiro fica triste. E aqui em São Paulo, quando Perséfone desembarca, faz sempre sol.

DETALHES TÃO PEQUENOS DE NÓS DOIS...




Sábado, dia sagrado de cinema. Duas décadas atrás, eu e ele pegávamos o jornal e víamos onde e e em que horário estava passando o filme que íamos ver. Era uma operação simples e rápida.
Hoje, não mais:
- Não estou entendendo nada que tá escrito aqui! Porcaria de letra pequenininha! Também, minha vista está uma droga...
- Deixa que eu tento. - Apanho o "Guia da Folha" e constato:
- Também não estou enxergando nada.
Olhamos um pro outro, perplexos. É aí que chego à conclusão inevitável:
- Estamos envelhecendo juntos! Sua vista não vale mais nada, a minha também não. Que romântico!
- Romântico? É uma merda, isso sim.
- Mas é por isso que as pessoas têm filhos!
Chamamos a Marília e tudo se resolve.
Por enquanto. Quero ver quando chegar o Alzheimer...

O PSY E O CONFLITO DE GERAÇÕES: UM PROBLEMA ODONTO-MUSICAL




Entramos no carro pra ir ao médico, em Santo Amaro. E antes que você possa dizer "trânsito horrível", ela já sacou da bolsa seus CDzinhos mal-ajambrados, sem capa, com o título escrito com caneta Pilot. Piratão mesmo.
- Eu escolho os CDs na ida, você escolhe na volta.
No começo ela até pega leve: Sinéad O'Connor, Chico Buarque. Aí, chega o momento que eu temia.
- Um psy da hora.
- Ai, meu Deus, eu não mereço...
Já era. Os sons infernais enchem o carro. Respiro fundo, procuro me lembrar do meu pai que odiava rock, mas, porra!
- Marília, eu até entendo que você queira ouvir esse troço pra dançar. Mas aqui? Sentada no carro? Parada?
- É legal do mesmo jeito.
- Não, não é. É um saco. Fica horas tocando a mesma coisa, com essa batidinha e o sintetizador vagabundo no fundo.
- Você não entende disso. - E lá vou eu, pela Santo Amaro congestionada, em plena tarde de terça-feira, ouvindo aquela batidinha retardada.
- Olha agora! - diz a Marília, em determinada altura – Olha só esse sintetizador...
- Marília, esse troço parece motor de dentista!
- Ah, mãe! Não zoa, vai!
- Igualzinho! Minhas obturações reconhecem, tá ligada?
- MÃE!
Ela ficou furiosa, problema dela. Odeio psy! Na volta, só toquei Morrissey.

terça-feira, abril 03, 2007

MARIA ANTONIETA, RAINHA DA FRANÇA E FASHION VICTIM


Ontem fui ver "Maria Antonieta", da Sofia Coppola. E ainda bem que a Sofia (que além de ser filha de um dos meus deuses pessoais, tem no currículo dois filmes bem bacaninhas) fez esse filme para resgatar a injustiçada figura histórica da Kirsten Dunst - digo, da Maria Antonieta.
É um milagre a rainha da França ter sobrevivido pra ser guilhotinada, em 1793. Segundo o filme da Sofia, ela já deveria ter morrido há muito tempo. De tédio.
Ô vida chata que a Antonietinha levava naquela corte! Pobrezinha! Quer dizer, das duas uma: ou ela levava uma vida muito chata, ou a Sofia fez um filme muito chato. Uma hora eu levantei, fui ao banheiro, comprei pipoca, bati um papo com a moça da bilheteria... e quando voltei 'tava tudo igual. A Maria Antonieta estreando vestidos, passeando por Versailles, ou batendo papo com as peruas suas amigas.
Graças a Deus, aí veio a Revolução Francesa pra tirar a moça do tédio...
Mas foi exagero dos caras cortar a cabeça da moça. Um bom tanque de lavar roupa fazia o mesmo efeito.

Bom, é o que acontece quando você quer contar a vida de um personagem histórico... tirando ela da História.

MULHER + SEXO = ZERO


Estou lendo um romance de um desses escritores brasileiros que todo dia acorda revoltado porque não se chama Charles Bukowski nem mora na Califórnia. Um problema, né? Esses moços escrevem livros descascando a espécie humana em geral, e as mulheres em particular. Uns escrevem melhor, outros pior. Mas a substância é sempre a mesma: eu sou fodão, inteligente e gostoso; o resto do mundo é uma merda; todo mundo é babaca; e os mais babacas de todos são aqueles que tentam mudar o mundo.
Até que o autor em questão não escreve mal, tem uma coisa assim meio noir, sabe? mas o que eu fico observando (já que a história não é grande coisa, apenas um fio tênue ligando as ruminações existenciais do fodão) é que, dentro desse universo, o herói está sempre comendo um monte de mulher.
Isso é estranho, porque, em princípio, ele não gosta de mulher.
Não que seja gay: é só que ele não gosta de ninguém.
Por que então – pergunto – comer as mulheres? E todas, absolutamente todas?
A questão me intrigava, mas hoje tive um insight que responde essa pergunta. A substância do livro do Bukowski tropical é a seguinte: ninguém vale nada, todo mundo é insignificante e tolo. Na ficção (notem que digo na ficção), transformar os personagens masculinos em nada, num zero, é fácil. Já com as mulheres é um pouco mais difícil. É mais complicado tirar a humanidade de uma mulher do que a de um homem.
O único jeito de operar essa transformação é... comê-las! Uma vez que você foi pra cama com uma mulher (e todas as mulheres desejam ardentemente ir pra cama com o fodão. Não entendi porque, ele parece um cara tão desagradável) você já a desmoralizou, ela não é mais nem personagem, é um zero à esquerda... Vira “aquela putinha que eu comi” (não estou exagerando, é exatamente assim que o Bukowskizinho fala no livro).
O interressante é que essa operação tão pós-moderna de um autor tão hype é feita com o mesmíssimo mecanismo que vigora há milênios, no imaginário masculino. Vocês conhecem a cantilena, não é, meninas? As mulheres se dividem em duas categorias. Tem as fáceis, que vão pra cama com os caras e não valem grande coisa. Tem as sérias, candidatas a mãe-dos-meus-filhos. E, ah, é claro, tem uma terceira categoria: a senhora mãe deles.
Consumada esta manobra conceitual, o autor (e às vezes também o leitor) respira aliviado, porque aquela complexidade básica, aquele poço escuro sem fundo do feminino, que assusta escritores, padres e aiatolás, deixa de o ameaçar.
Ela é só uma putinha.
Mais ou menos como “ela é só uma garota gostosa na capa”, ou “ela é só aquela coitada de chador”.
Interessante. Muito interessante.

NHOQUES ME MORDAM!


Parecia tão fácil... Quando eu via Dona Conceição Diana, minha avó, amassando batata e farinha pra fazer os seus famosos nhoques, parecia a coisa mais simples do mundo.
Trinta anos mais tarde, eu já deveria ter desconfiado que não era tão fácil assim... Nunca mais comi nhoque que se comparasse ao dela.
Anteontem, entretanto, resolvi que ia fazer minha primeira tentativa de nhoque. Sou uma cozinheira bem razoável. Faço um trivial bacana, até arrisco uns pratinhos mais sofisticados. Não devia ser tão difícil...
Arranjei uma receita, fervi as batatas, abri a farinha e....
Duas horas depois lá estava eu, de pé, suando em bicas nesse outono do aquecimento global, lutando contra a maldita massa que se recusava a tomar forma. Enquanto eu amassava, várias coisas aconteciam. Pessoas entravam e saíam. O tempo passava. O telefone tocava. Minha filha foi dar uma voltinha, eu fiquei amassando. Ela voltou, eu continuava amassando.
Finalmente desisti, botei a maldita massa no lixo e comecei a limpar. Fiquei horas limpando as louças sujas, a mesa onde tinha feito a massa, meu avental, a sala onde eu me sentara alguns minutos... Limpei tudo, fui tomar um banho, e caí dura na cama. Dez a zero pro nhoque.
Hoje de manhã meu marido reclamou:
- Porra, tinha batata até no controle remoto.

Não, não desisti. Eu vou fazer de novo.
Tá, aprendi que a habilidade de fazer nhoque não é geneticamente transmitida. Mas eu vou tentar de novo!
Me dá só uma semana. Que esse danado vai ver uma coisa.

CALÇANDO A SANDÁLIA DA HUMILDADE


Quebrei meu dedinho do pé andando de salto alto numa trilha da Ilha Grande.
Pronto, já contei a parte mais embaraçosa. Agora vem o resto.
Paguei caro o meu ataque de peruíce! Fiquei com o pé enfaixado nesse calor horrível, foi um saco. Toda semana eu voltava no PS do São Luiz, ansiosa pra que o cara desse alta do meu dedinho, mas... nada. Ele simplesmente me mandava trocar a faixa. E lá ia eu de novo para o dedicado profissional encarregado de botar gesso, faixa, essas coisas. Acabamos até ficando chapinhas.
Teve um dia que cheguei me queixando que a perna doía.
- Isso acontece porque você força a perna, tentando andar direito - explicou o cara. - Até consegue, mas aí fica com dor.
- Mas como é que eu tenho de andar, então?
- Uai... mancando, né?
Olhei para ele, perplexa:
- Mancando?
- Mancando. Quem quebrou o pé, manca. Entendeu?

Entendi, entendi. Vale até pra outras coisas da vida...
Instantinho que eu vou ali, calçar as sandálias da humildade!

terça-feira, janeiro 30, 2007

BANDEIRA ZERO: HISTÓRIAS DE TAXISTAS PAULISTANOS


Dóris Fleury

Entro no táxi já atrasada para um compromisso. O taxista, senhor de uns sessenta anos, dirige calado durante alguns minutos, e depois desembesta:
- A senhora acredita em espiritismo?
E essa agora! Se eu acredito em espiritismo? Às oito horas da manhã?
- Eu, hum... pra falar a verdade, não.
- Pois eu acredito. Veja bem: hoje eu sonhei a noite inteira com a minha ex-esposa.
- Viva?
- Muito viva, mora em Fortaleza. Aí, acordo, entro no táxi e a primeira passageira que entra é a senhora!
- Mas...
- Com um perfume igualzinho ao da minha ex-esposa!
Minha Nossa Senhora. Seria cantada? Mas não, o homem falava sério. Estava impressionado com a coincidência:
- Preciso ir no Centro Espírita. Hoje à noite sem falta!
- Não seria melhor procurar sua ex? Quem sabe ela também não pensou no senhor!
- É... pode até ser, a gente ficou junto quarenta anos. Mas hoje em dia ela está casada com outro - diz o taxista.
- E o senhor?
- Nunca mais me casei - confessa ele, suspirando.
Coitado do homem. Se eu soubesse, botava outro perfume.
****************************************************
- Moço, preciso ir pra Perdizes. Rápido!
- Sinto muito, minha senhora. Pra Perdizes não vai dar.
- Como assim, não vai dar?
- É que, sabe, comecei há pouco tempo na praça. E até agora, só aprendi a ir a Pirituba.
- Mas...
- Pirituba serve pra senhora?
**************************************************************
Esse táxi quem pegou foi meu marido. O motorista era japonês e dirigia feito um maluco, com a cara praticamente enterrada no volante. Enquanto isso ia conversando. Falou da vida, do trânsito da cidade, etc, e uma hora confessou pro meu marido (a essa altura, pálido de medo):
- O médico lá do Detran farou que eu não posso dirigir, nô? porque sou cego de um olho e com o outro não enxergo quase nada! mas eu dirijo mesmo assim, viu?
E deu uma risadinha sinistra.
********************************************************************
Mas nem só de passagens engraçadas vivem os taxistas de São Paulo. Paulistanos da gema - não importa se nascidos aqui, no Nordeste, ou em Trás-os-montes - eles estão sujeitos a todos as misérias e horrores da metrópole. Como o caso daquela taxista, arrimo de família, honestíssima, que depois de dar duro o mês inteiro vinha com a féria da cooperativa no carro. Por mero acaso, passou em frente a um bingo enorme, desses que parecem nave espacial, cheios de luzes piscantes.
Nunca tinha entrado num daqueles estabelecimentos. Não jogava nem canastra. Naquele dia, deu a louca de entrar.
Quinze minutos depois, tinha gasto o dinheiro todo.
Está pagando até hoje, com sangue, suor e lágrimas. E o pior é que nem sabe explicar o que aconteceu.
************************************************************
- Vou na rua Tal.
- Ah, não sei onde fica isso...
- Vamos consultar o Guia, então!
- Não vai dar.
- Por quê?
- Tá no porta-malas.
Essa cena é tiro e queda. Todos eles têm o Guia de São Paulo. E todos eles, por algum motivo misterioso, o guardam no porta-malas.
Há uns dez anos, todos eles votavam no Maluf. E adoravam o Jânio Quadros. Vinham o caminho todo louvando as figuras. Quando eu lembrava que esses políticos sofriam acusações de corrupção, eles davam de ombros. Um deles me disse, singelamente:
- É claro que político rouba. Todos roubam. Quer saber de uma coisa? Se eu fosse eles, também roubava!
E as teorias de conspiração? Taxista adora conspiração. Na época da morte do Tancredo Neves, fizeram a festa. Tinham certeza que o presidente tinha morrido vítima de um complô sinistro, e não da prosaica incompetência dos médicos de Brasília.
Essas teorias tinham ramificações e envolviam, inclusive, a conhecida repórter da TV Globo, Glória Maria. Ela fora testemunha do complô sinistro, e para não denunciar a história, fora raptada, assassinada, chantageada, drogada, um troço assim. Como me afirmava um taxista português:
- Tanto é verdade, que a senhora notou que ela sumiu? Nunca mais vimos a Glória Maria na TV! Deve ter ficado decepcionadíssimo quando a moça reapareceu.
Quando não estão falando de política, falam de assalto. A maior parte da categoria já foi assaltada. E assalto que eu falo é daqueles feios, com míni-seqüestro, ameaça de morte, horas com o cano do revólver encostado na cabeça. Todos conhecem algum caso de colega assassinado por um bandido dedo-mole - do tipo que gosta de atirar depois que a vítima já se rendeu. Por isso, taxistas gostam daqueles políticos que propõem o remédio infalível:
- Pena de morte nesses vagabundos!
Mas no fundo são boa gente, os taxistas. Um tanto piradinhos, mas você não ficaria pirado depois de enfrentar o trânsito dessa cidade por oito, dez, doze horas por dia? Eles também, puxa. A pessoa se estressa. Briga com todo mundo. É um problema.
E depois, quando volta pra casa, só ficou um vidro vazio de perfume.

terça-feira, janeiro 16, 2007

O ABISMO DE TODOS NÓS












Dóris Fleury


Foi na tarde da sexta-feira que comecei a ouvir frases assim:
- Então, o buraco...
- Me atrasei por causa do buraco.
- Quero ver como fica o trânsito depois desse buraco.
Mas que história era essa, afinal?
- Não ouviu falar? Abriu uma cratera enorme nas obras do metrô, ali na Marginal Pinheiros. Foi um desabamento...
Morreu gente?
- Ainda não sabem com certeza, mas parece que sim.

E assim começa o ano para os paulistanos: caindo no buraco. Fiquei imaginando a cena, o susto dos coitados que deram o azar de estar passando por ali naquele momento. A terra se abriu debaixo dos seus pés, literalmente. Feito cena de filme-catástrofe dos anos 70.
Só que, nesse filme, não tem final feliz.
Na superfície, ficamos nós, os felizardos que não estavam passando por ali. Espiamos nervosamente o buraco, como se ele também fosse nos tragar no momento seguinte. Sintonizamos a rádio, visitamos os sites noticiosos, ansiosos pelas últimas notícias do buraco. A grua enorme, encostada na beira da cratera, nos dá vertigens: e se ela cair de repente? Todo mundo pensa: podia ser comigo. (Podia ser com a minha filha, que estudou durante anos num colégio ali na Rua Capri).
Mas de quem é a culpa? O governo olha pra empreiteira e ela sacode a cabeça, assobia, finge que não é com ela. Nós olhamos pro governo, ele ajeita a gravata e promete rigorosa apuração.
E enquanto isso o verão continua. Desço a Imigrantes no fim-de-semana, chego na praia e assim que boto o pé na casa do meu irmão, vem a pergunta de todos:
- E o buraco, hein?
(E por falar em buraco: uns idiotinhas andaram destruindo a lagoa natural de uma das extremidades da Juréia, para fazer pororoca artificial e surfar ali. Morreu um monte de peixes. Declaração de um dos surfistas: "Fiz isso porque sou homem e isso é areia. Não foi crime ambiental". Nesse caso, quem caiu no buraco foram os peixes.)

Volto para São Paulo e o assunto continua sendo o buraco. É como se, depois das festas, do Natal, do Ano Novo, caíssemos na realidade. Ou seja, no buraco. Uma enorme cratera foi aberta por um consórcio de empreiteiras que não conhecemos, operando com critérios dos quais nem o governo tem idéia. Alguns cidadãos pagaram o erro com a vida. E o pior é que não dá pra dizer, tapem o buraco, enterrem os mortos e fica tudo por isso mesmo. Se existe alguma salvação para a cidade de São Paulo, ela está nos túneis do metrô - esse serviço abençoado que poupa gasolina, evita congestionamentos e impede que a cidade pare de vez. Desde a década de 70, começando na gestão Maluf, todos os governos estaduais e municipais deviam ser processados por construírem pouco ou nenhum metrô.
Metrô é urgente. Segurança nacional. Mas nada disso justifica o que aconteceu.
Sai a foto da primeira vítima encontrada. Coitada da Dona Abigail Azevedo. Cara de vó da gente. Ia ao médico. Mas aí, a terra se abriu...
E o pessoal da van que estava passando ali? Continuam procurando. Será que sobreviveram? Como esperança é a última que morre, os parentes, em volta do buracão, aguardam ansiosamente as notícias.
Faz calor. Chove. Incrível como está chovendo nesse verão. Terá sido isso que provocou o desabamento? Não, respondem os especialistas, a chuva era previsível nessa época do ano. Ofendidas com a suspeita de que possam ter algo a ver com um desabamento numa obra que estavam tocando, as empreiteiras reclamam, usando como porta-voz um âncora da Globo. Em off, claro. Se sentem injustiçadas.
Identificada a segunda vítima. Valéria Alves Marmit, uma advogada de 37 anos, que estava passando no local. Mãe de três filhos.
Ainda tem a van pra localizar. Completa, com passageiro, cobrador e motorista.
E a pergunta que não quer calar: haverá sobreviventes? Alguém lembra que, em casos parecidos, muita gente já foi encontrada viva, depois de até cinco dias soterrada. Basta ter um pouco de ar pra respirar... O governador, mais realista, avisa pra não alimentar falsas esperanças. A tevê transmite ao vivo do local, sem parar. Entrevista com as famílias. Entrevista com os engenheiros. Entrevista, digo, matéria com as cadelas farejadoras que trabalham no local. Entrevista com os coitados que tiveram de ser desalojados de suas casas, com risco de desabar. Em alguns casos perderam tudo mesmo, não puderam retirar nada. Indenização? O certo seria pagar já, agora, nesse exato instante. Mas a história de casos parecidos, aqui no Brasil, não é muito promissora.
Em meio a tanta confusão, já se avisa que as obras não serão suspensas. Logo vão localizar as outras vítimas. O Corpo de Bombeiros é competente. Até as cachorras deles me parecem competentes. Mas não sei não. Por trás de todo esse auê, de todo esse barulho e sensacionalismo por causa de um acidente muito menos mortífero que qualquer deslizamento em favela, existe algo estranho. Por um motivo metafísico que me escapa, todos nós, paulistanos, gostaríamos de ir até lá e olhar o fundo da cratera. Talvez para meditar sobre a finitude das coisas. Talvez para suspirar pelo dia, sempre distante, em que teremos uma nova linha de metrô. Talvez para homenagear os que perderam a vida ali. Ou talvez, simplesmente, para contemplar o buraco.
Feito isso, voltaríamos todos às nossas casas. O buraco seria tampado, e 2007 poderia começar.





terça-feira, janeiro 09, 2007

O BOI É SEU AMIGO?


Dóris Fleury

Só me faltava essa: minha filha virou vegetariana. Ela viu um documentário chamado A carne é fraca, que questiona a indústria e o consumo da carne. Ficou tão horrorizada que jurou nunca mais comer bois, frangos ou galinhas. NUNCA MAIS! Agora, toda vez que vê a gente fritando um bife ou saboreando uma feijoada, vem com um slogan assim:
- Animais são amigos, não comida!
Ou então faz um questionamento maldoso:
- Mãe, como você se sentiria se alguém comesse os nossos cachorros?
Ou ainda:
- Você já viu alguém matar um porco? Já viu, hein?
Atualmente, minha luta é convencê-la de que peixes são bichos estúpidos e merecem morrer. Dito assim, parece cruel com os peixes; mas estou preocupada com a alimentação dela. Essa menina não come mais proteína. É muito bonito poupar os nossos "amigos", mas ninguém sobrevive só de verdura e arroz integral. O que fazer para que ela se alimente direito, mesmo respeitando suas nobres convicções?
Os vegetarianos dizem que existem alimentos ótimos que repõem a proteína etc. Não vou nem entrar em discussões científicas, para as quais não sou qualificada. Mas já ouvi muito nutricionista argumentando que você teria de comer um barril de espinafre pra repor o ferro de um bife. Não existem alimentos que tenham valor protéico igual ao da carne. Por isso mesmo a natureza criou a cadeia alimentar, né? Se você examinar a nossa dentição e o nosso tubo digestivo, verá que foram planejados para que comamos de tudo... inclusive carne.
Pois é. Em princípio, somos onívoros. Não podemos viver só de verdura, como as vacas. E o que os senhores vegetarianos propõem para substituir a carne? A soja!
Lá fui eu, comprar carne de soja na loja de produtos naturais.
Gente. Não dá. Olha que sou boa cozinheira! Tentei de tudo! Estrogonofe de carne de soja. Hamburguer de carne de soja. Irc! A Marília se recusa a comer, e não posso culpá-la... é horrível mesmo. Até os cachorros enjeitaram. E eles comem de tudo.
Tofu é gostoso, mas ela já enjoou.
Sim, o boi é nosso amigo. Mas a verdade é que ele me meteu numa bela encrenca. Já é difícil planejar e executar um cardápio todo dia... imagine dois!
Outro dia saí com uma amiga minha e seus sobrinhos, que são de Bauru. Fomos comer uma picanha. Enquanto estávamos destroçando o "amigo", comentei que a Marília tinha virado vegetariana.
- Ah, um amigo meu também virou - me informou o rapaz. - Parece que ele viu um documentário chamado A carne é fraca, e nunca mais quis comer nem frango! Puxa... vou tomar cuidado pra não ver esse filme!
Demos risada, mas, pessoal. Se até em Bauru tem gente se convertendo ao vegetarianismo, a coisa é séria. O lazer predileto da cidade é o churrascão de fim-de-semana. E a quantidade que o povo come nesses churrascos, vocês não acreditariam. Vegetarianos em Bauru? Tomem nota do que eu digo: eles vão dominar o mundo.
E nem dá pra dizer que são só um bando de chatos.
Caçar e comer animais para sobreviver é a coisa mais natural do mundo. Todo carnívoro faz. A caça se defende como pode. O homem fez isso durante milhares de anos. Aí, um belo dia, começou a criar bichos para comer, e isso mudou a escala das coisas.
Os métodos de criação de gado, atualmente, são bárbaros. Terríveis. Vocês já foram a uma granja? Já viram como vivem os bichos lá? Nem galinha merece isso.
Na Europa e nos Estados Unidos, o gado é confinado em espaços mínimos, alimentado com doses maciças de hormônio, e... vocês sabem como é criada a vitela? Se souberem, vão dar graças a Deus por esse tipo de carne não ser popular por aqui. Não é à-toa que lá surgiu a doença da vaca louca; começou quando eles tiveram a brilhante idéia de alimentar os bois e vacas com... restos moídos de boi e vaca. Deu tilt, claro.
Aqui no Brasil gado é mais feliz. Vive solto no pasto. Dizem até que a carne é mais saborosa, por conta disso. Mas os matadouros são um horror. O gado, que não é tão burro assim, percebe que vai ser abatido, entra em pânico e segrega hormônios venenosíssimos... que depois a gente ingere. Existem métodos de abate mais humanos, mas ninguém está interessado em implantá-los. E outra coisa: o que tem de matadouro clandestino por aí não é brincadeira.
E agora vem a pior parte... estamos destruindo a natureza pra manter todo esse gado. Derrubamos florestas e mais florestas, destruímos lavouras e expulsamos pequenos agricultores pra botar pasto no lugar. E não há pasto que chegue. O boi é responsável por tanta devastação e miséria quando o famoso "agronegócio" da soja (eu realmente não gosto desse troço!). Sem falar que seus gases aumentam o efeito estufa...
Quando começo a pensar por esse ângulo, os vegetarianos não parecem tão malucos, afinal. Mas... será que é o consumo de carne, em si, é responsável por toda essa desgraceira? Aí vem a pergunta que pode incomodar carnívoros e vegetarianos: precisamos comer tanta carne assim?
Os chineses usam a carne como um tempero, uma especiaria na comida. Será que se tivéssemos um consumo assim, mais humano, mais sensato, não evitaríamos todos esses problemas? Será que precisamos mesmo de churrascarias de rodízio? Ou de chesters peitudos sem gosto de nada? Ou daqueles medonhos breakfasts americanos, com toneladas de bacon? Um bife por dia não seria mais do que suficiente para nós? Por que raio temos que ser tão exagerados, tão maníacos em tudo?
Vale a pena pensar um pouquinho. Até porque a resposta a essas perguntas é urgente.
Pense rápido: quantos "amigos" você precisa matar pra ser feliz?