terça-feira, agosto 08, 2006

A ARTE DE VOAR COM MEDO


Dóris Fleury

Um dia, pediram ao Jorge Amado uma definição de felicidade. O velhinho pensou, pensou e depois decretou:
- Felicidade, meu filho, é descer do avião!
Taí uma pessoa com quem me identifico (e não apenas por gostar dos seus livros, desprezados pela crítica literária míope). Felicidade é: descer daquele inferno alado, daquela máquina de suplício, daquele monstro voador que odeio com todas as minhas forças. E do qual, infelizmente, não posso prescindir.
Vou pros Estados Unidos no próximo dia 7. Que inferno... quer dizer, a viagem é o máximo; mas só o pensamento de entrar naquela coisa me deixa doente.
Antigamente é que deveria ser legal. Pra fazer uma viagem dessas, você embarcava num confortável navio, onde tinha cama pra dormir, tripulação te paparicando, boa comida e uma linda paisagem. Tá certo que demorava; mas pra quê a pressa?
E por que não gosto de avião? uai, por um motivo muito simples: eles caem.
É isso aí, pessoal. Aviões caem.
E não venham me com essa conversa de que eles são o meio de transporte mais seguro, etc. Não acredito nessas estatísticas. Elas são manipuladas pelas companhias aéreas. Aviões caem sim. Vive aparecendo na televisão, vocês não vêem televisão?
O avião é um absurdo, um troço que na minha opinião nem deveria ter sido inventado. Pra começo de conversa, já está na contramão de uma força natural poderosíssima. Quem Santos Dumont pensava que era, pra ir contra a gravidade?
Não deu outra: eles caem.
Quando comecei a voar, vinte anos atrás, as pessoas me diziam: com o tempo você acostuma e perde o medo. Estou esperando até agora que esse momento chegue. O tempo passa e meu medo só piora.
Dentro do avião, eu me transformo. Viro outra pessoa - uma pessoa apavorada. Não converso com ninguém. Tento ler, mas não consigo seguir o enredo do livro. Tento pensar em outras coisas... mas aí me lembro de que estou dentro de um avião. Porca miséria! Estou dentro de uma máquina imensa, cheia de combustível inflamável, viajando a velocidades absurdas, a quilômetros do solo!
Sem falar na comida, que é horrível.
As palavras "mais pesado do que o ar" soam no meu ouvido. Em tom fúnebre. Fico tão transtornada, que já teve caso de eu não cumprimentar um amigo que entrou no avião. Ele pensou que eu estivesse zangada com ele...
As aeromoças fazem aquela demonstração com a máscara que cai de cima etc. Eu sou a única pessoa ali ouvindo o que elas dizem. É nesse momento, aliás, que escuto outra expressãozinha que eu acho o máximo: "assentos flutuantes". Significa que posso terminar essa viagem boiando numa poltrona no Mar do Caribe, com um cardume de tubarões à minha volta... E isso, se der sorte e não me espatifar na queda.
Como as outras pessoas conseguem ficar calmamente em seus assentos, lendo revistas e batendo papo, é uma coisa que eu não entendo. Deve ser uma forma especial de loucura, que só poupou algumas pessoas sábias - como eu. Esse pessoal são todos uns inconscientes. Não têm noção do perigo.
Morro de inveja deles.
Quando falo do meu medo de avião, em geral as pessoas perguntam: mas de que parte da viagem você não gosta? Aí é que está, não gosto de nenhuma! A decolagem é um suplício: o momento em que o avião se separa do solo e começa a voar é de pânico absoluto, desamparado, frenético. Aí ele se estabiliza no ar; o problema é que eu não acredito nessa estabilidade. Qualquer sacudãozinho à-toa, desses que as pessoas dizem que são normais, me dá o maior susto. Durante o vôo, fico observando as aeromoças, vendo se elas não estão nervosas... E elas nada, passeando de um lado pro outro com a maior naturalidade.
Como uma pessoa se torna aeromoça? Essa é outra perversão que eu não entendo.
Aí as pessoas falam: e isso porque você nunca pegou uma turbulência. Turbulência! Jesus, Maria, José, eu sei que eu não vou sobreviver a uma turbulência. Vou falecer ali mesmo. Preciso de um negócio que me ponha pra dormir e com o qual eu não acorde, mesmo que o avião tenha sido seqüestrado por um bando de terroristas (em cujo caso o melhor é dormir mesmo).
Saio correndo pro meu terapeuta, que bondosamente me receita um tranqüilizante qualquer. Mas pra cúmulo do azar, sou daquele tipo de pessoa pouco sensível a anestésicos, tranqüilizantes etc. Comigo, o efeito deles acaba rapidinho. Nas duas ocasiões em que passei por cirurgias, acordei antes da hora.
Dessa vez vou pedir uma dose pra adormecer mamute. Se eu chegar em Nova York completamente grogue, azar, que se dane. A cidade está cheia de junkies, mesmo.
E isso não atrapalhará a sensação maravilhosa de estar voltando à terra firme... é fantástico! O Jorge Amado tinha razão, é pura felicidade. Inclusive, embora as tais estatísticas afirmem que grande parte dos acidentes acontecem na aterrisagem, nessa hora eu sinto muito menos medo. E botar os meus pezinhos em terra firme, então, é melhor que orgasmo.
Mas - alguém pode perguntar - se você tem tanto medo de avião assim, por que entra neles? Ora, porque senão, não poderia viajar. Deixaria de viver uma coisa maravilhosa e importante para mim. O Jorge Amado, com medo e tudo, viajou a vida inteira. E é o que eu pretendo fazer.
Alguém aí tem um Lexotan?