terça-feira, setembro 12, 2006

7 de setembro de 2006


Vamos deixar uma coisa clara: eu não sou o tipo de maluca que liga desesperada pro terapeuta às dez horas da noite de um feriado.
- Gérson, não posso tomar esse remédio...
Eu sou o tipo de maluca que liga pro seu terapeuta às dez horas da noite de um feriado, mas só porque:
- ...diz aqui na bula que ele não pode ser usado com o meu remédio pra rinite.
(E também o tipo de maluca que sempre lê a bula.)
- Eu não sabia que você estava tomando remédio pra rinite – pondera meu bondoso terapeuta, que nem sequer me manda à merda.
- Mas você acha que tem algum problema? - pergunto, esperando que ele me diga: “que nada, isso é exagero do fabricante...”
- Acho que você NÃO deveria tomar esse remédio – ele responde. Assim, com caixa alta na partícula negativa.
- Ah... tá... brigada, desculpe incomodar – digo eu. Desligo o celular, olho à minha volta e engulo em seco.
Estou no portão de embarque 11 do Aeroporto de Cumbica, sozinha, desamparada, e vou ter de tomar um avião a seco. Sem tranqüilizante, remedinho, nem mesmo uma bebidinha.
Glup.
Duplo glup.
“Senhores passageiros do vôo 120 da Delta Airlines, com destino a Nova York...”

8 de setembro de 2006

A japonesa sentada ao meu lado é bem-educada: não ronca, não deixa a luzinha acesa, não fica tagarelando, não espalha farelos pela poltrona inteira. A japonesa sentada ao meu lado é o que se poderia chamar de uma ótima vizinha de avião. Mas, nesse momento, ela é também o principal empecilho à minha felicidade.
Estamos as duas numa fileira de três poltronas. Se a japonesa me fizesse a gentileza de desaparecer, eu seria uma pessoa feliz. Assim poderia estender meu pobre e cansado corpo na fileira de poltronas e descansar um pouquinho.
A menos que você seja anão, é rigorosamente impossível esticar as pernas num avião hoje em dia, pelo menos na posição sentada. Se não for um anão, então tem que ser rico -pra sentar naquelas belas e confortáveis poltronas da primeira classe.
E depois estranham que eu me revolte com a injustiça social.
Sorte que achei uns Lexotans no fundinho da bolsa. Foi o que me salvou. Sem o tranqüilizante poderoso que o Gérson tinha me prescrito, engoli duas pilulazinhas cor-de-rosa. Tinha tido um dia cansativo, estava podre... Não dormi, mas fiquei numa espécie de transe que melhorou bastante o pânico da decolagem.
Em algum momento do vôo, a japonesa desapareceu. Oba! Me estendi e quando acordei, só faltava uma hora para a aterrisagem.

Se vocês acham muito glamuroso ir pra Nova York, esperem até precisar andar VINTE quarteirões na Big Apple carregando um pesadíssimo laptop na bagagem. Junto com todas as tralhas que vieram juntas, o safado devia pesar uns dez quilos.
Demorei horas para achar a loja, descobrir que não tinham o modelo que eu precisava, ligar pro Brasil e pedir instruções, me explicar pro vendedor... E depois? Depois, nada. Tive que voltar pra Penn Station, onde tinha deixado a mala, porque estava cansada demais para fazer outra coisa. Fiquei sentada na sala de espera até a hora em que peguei o trem para Hudson, NY.
Mudanças em Nova York desde a última vez que estive aqui, há dez anos: um certo ar de paranóia na cidade. O noticiário dá calafrios, é só ameaça de bomba, último vídeo do Bin Laden (como diz o Zé Simão: esse cara não é terrorista, é videomaker!), furacão que vem pra Flórida, mais uma vez (mas eles não querem reconhecer o aquecimento global, acham que é coisa de ecologista de miolo mole), um maluco que raptou uma criança, etc.
Tem polícia e bombeiro que não acaba mais na rua, e os noticiários vão avisando que “Nova York ainda é um alvo preferencial de atentados!”. Tem a ver com o aniversário de cinco anos da queda das Torres Gêmeas, que acontece daqui a pouco tempo. Nesse clima, é interessante reavivar a paranóia.
Até porque, no fundo, todo paranóico tem um pouco de razão...
O novaiorquino é meio grosso pra te atender; eu ignoro a grossura e continuo na maior educação. O que me chamou a atenção dessa vez foi o número de pessoas que anda na rua grudada no seu celular, completamente fechada no seu mundinho digital, ignorando a realidade à sua volta. É muita gente, de todas as classes sociais. Mais do que no Brasil. Um troço meio autista.
Mas hoje faz um lindo dia de sol, as pessoas passeiam na rua, as meninas mandam ver nos decotões e exibem as pernas, aproveitando o final do verão. E tem homem bonito em Nova York sim senhor. A maioria, na minha opinião, crioulo. Cês precisam ver o rapaz que me levou no shuttle do aeroporto para Manhattan. A cara do Wesley Snipes.
Espetáculos, teatros, museus, consumo, muito verde, gente de todos os lugares do mundo... gente, o que eu queria dizer era o seguinte. Não sei no resto dos Estados Unidos. Mas aqui em NY, você só é infeliz se quiser.
E mesmo com a paranóia toda, as pessoas não me parecem especialmente infelizes.

Ledig House é uma instituição americana que se especializou em abrigar escritores por períodos de tempo de até dois meses. A sede fica em Ghent, no estado de Nova York, uma região linda, meio turística.
Tem um jeito fácil de explicar o que é Ledig House pros meus coleguinhas escritores. Imagine que você morreu e foi pro céu.
Aqui os escritores têm tranqüilidade e estrutura para escrever o dia inteiro.
Você faz rigorosamente o que quiser. Ninguém te interrompe. A campainha não toca. O telefone também não. Não tem criança pra cuidar, chefe pra obedecer, casa pra cuidar. Você tem um quarto só pra você, computador e Internet. Pintou fome? A cozinha está cheia de comida, é só ir lá pegar. E à noite rola um jantarzinho, com direito a vinho, e conversa com outros escritores. Tem gente de todo mundo: um suíço, um italiano, um espanhol, uma croata, e até uma neozelandesa, que é minha vizinha de quarto.
Gente... não dá pra explicar como estou feliz.
Se pelo menos minha Internet funcionasse!

10 de setembro de 2006

Algum milionário bondoso poderia fundar no Brasil uma instituição como a Ledig House.
Se você é escritor, sabe do que estou falando. O mais difícil, para nós, é conquistar respeito pelo nosso trabalho. Mesmo que as pessoas ao redor te dêem o maior apoio (o que é meu caso), escritor não é exatamente uma profissão. Ninguém pediu pra você escrever. Você não vai ganhar a vida com isso – vai ter de arranjar um emprego, e escrever nas horas vagas.
No Brasil então, o único que consegue ganhar dinheiro com literatura é o performático Paulo Coelho. Todo mundo morre de inveja. Mas, por outro lado, nenhum escritor sério quer ser o Paulo Coelho.
(Vejam bem, não estou argumentando aqui que o homem da capa preta não é escritor, como dizem alguns críticos. Ele é escritor. Só que é muito ruim. A discussão é simples, não tem complexidades).
E para piorar as coisas, existe uma certa esquisitice intrínseca à literatura, por assim dizer. As pessoas sabem disso. Quando vim para cá, minha mãe me desejou, por telefone:
- Boa viagem! E boa sorte nos seus, hã... bom... escritos.
O requisito mais importante para produzir literatura é a solidão e o isolamento, pelo menos algumas horas por dia. Sem distrações. Não deve ser nada divertido viver com escritor. Graças a Deus, não sou casada com um!
Mas aqui na Ledig House ninguém se importa se você se trancar várias horas por dia na frente de um computador... Ou se comer quando der na telha. Ou se não atender telefone e conversar com as pessoas apenas quando tiver vontade. Ou se de repente sair pra dar uma volta e clarear as idéias. Ou se passar a noite em claro.
Está tudo dentro do esperado.
Enfim, a literatura aqui é tratada como uma atividade perfeitamente respeitável, que tem certos requisitos que devem ser tolerados, por mais estranhos que sejam. Uma maravilha!
Já estou arrependida de ter pedido para ficar aqui apenas três semanas. Se eu pudesse passar alguns meses por ano na Ledig House, a essa altura já seria Joyce. Ou no mínimo Proust.

Ontem o DW levou eu e a Brigid Lowry, uma escritora neozelandesa, para passear nas cidadezinhas próximas. DW Gibson é uma espécie de diretor da Ledig House, passa três dias por semana aqui e providencia para que nada nos falte. Uma espécie de babá de escritor.
Sabe como é americano: quando é ruim, é péssimo. Mas quando é bom, é ótimo! Pacientes, tolerantes, razoáveis, práticos e com um saudável senso de humor. Todas essas qualidades os americanos podem ter, de uma maneira particularmente americana. E o DW é assim.
Então ele levou eu e a Brigid – o Furacão Brigid, que não pára de falar e se agitar um só minuto – para dar uma volta e comprar roupas, já que nós duas não trouxemos roupas para o calor. E aqui está fazendo algo em torno de 18 a 25 graus.
Acabamos num hipermegabrechó – escritor é pobre, e americano não tem a menor vergonha de usar roupa usada. O lugar era enorme e estava cheio, todo mundo aproveitando os preços ridículos (uma camiseta no máximo cinco dólares, uma sandalinha bárbara, três). Fiquei reparando nas pessoas – particularmente nas mulheres, que são sempre mais interessantes.
Ledig House fica entre duas cadeias de montanhas, as Berkshires e as Catskill. Estamos em plena terra dos ianques. Hoje, em dia, essa palavra é usada para designar qualquer americano; mas foi nessa região, ao norte da Costa Leste, que a palavra “ianque” se originou. “Yankee” é uma espécie de caipira do norte.
Com o onze de setembro chegando (está virando uma espécie de data nacional), a Main Street de Chattam, por onde passamos, estava coberta de bandeiras americanas.
O povo daqui não tem muita alternativa de sobrevivência: a agricultura é fraca, a indústria nunca foi grande coisa. O que sobrou foi o turismo, porque alguns novaiorquinos ricos gostam de passar as férias aqui.
Existe pobreza. Talvez não no nível ao qual estamos acostumados lá no Brasil. Mas muita gente está desempregada ou com empregos como esses: caixa do Wal Mart, garçonete, funcionária do megabrechó, ou “thrift store”. Mulheres brancas, principalmente.
É triste ver o que a pobreza e a falta de perspectiva fazem com as pessoas. Vão falar que elas estão ótimas, comparadas com as mulheres pobres do Brasil. Hummm.... sei não. Existem estudos mostrando que muitas dessas mulheres (boa parte, mães solteiras) não conseguem mais, de jeito nenhum, fechar as contas no fim do mês. Aí já viu, pegam dois, até três empregos, têm de deixar os filhos com vizinhos, ou trancados em casa... vocês já conhecem a toada.
São mulheres tristes. Têm aquele olhar desanimado de quem não espera mais nada da vida, aquela lentidão nos gestos, aquela aparência de desleixo. E são gordas. Não “gordinhas” ou “fofinhas”; muitas delas estão enormemente gordas. Chega naquele ponto em que a pessoa desanima completamente, não se arruma mais, usa aquelas roupas largadonas, sem graça...
Nova York está cheia de mulheres interessantes, de todas as raças, tamanhos e cores. Pensei até em fazer um ensaio fotográfico sobre elas: a latina empurrando seu bebê no carrinho, a executiva apressada falando no celular, os grupos de garotas rindo, pela rua, com aquela felicidade de quem obviamente matou aula...
Aqui, parece que as mulheres vêm em modelo único.
Já se falou muito sobre a epidemia de obesidade americana, mas a gordura não é democrática. Rico não fica gordo. Rico tem informação, médico, nutricionista e personal trainer. O “white trash” é que é grupo de risco pra tal epidemia.
Outro problema: a comida vêm em tamanhos absurdos aqui! E nada tem gosto de nada, impressionante, parece tudo de isopor. Ao contrário do que se imagina, comida ruim também engorda. Até porque a pessoa come um monte antes de se sentir satisfeita.
Mas que as tais mulheres parecem bem tristes, isso parecem...

Ontem chegou aqui uma escritora russa, toda gostosa.

11 de setembro de 2006

Pois é, gente: chegou o dia fatídico.
Hoje é 11 de setembro de 2006. Há exatamente cinco anos, eu estava em casa, em frente ao meu computador, escrevendo um e-mail pro Daniel, que tinha feito aniversário no dia anterior – aliás, feliz aniversário, Daniel! – quando meu marido ligou: “Liga agora na CNN”.
Liguei a TV e lá estavam as malditas torres em chamas...
Foi um dos piores choques da minha vida. Passei meses paralisada de medo e horror. O único jeito que encontrei de reagir foi escrevendo, escrevendo, escrevendo... E depois disso, é simples: o mundo piorou muito. O mundo realmente piorou.

Bom, cinco anos depois, aqui estamos nós, oito pessoas de várias nacionalidades, trancados uma fazenda ao norte do Estado de Nova York... escrevendo, escrevendo, escrevendo.
É o máximo que podemos fazer.

Onze de setembro, Guerra do Iraque, Bush: aqui em Ledig House, só se fala nesses assuntos obliquamente. Nunca de forma direta.
Mas não faltam papos-cabeça: afinal, o que se pode esperar de um bando de nerds das letras? E eu adoro conversar papo-cabeça sem ter ninguém pra me patrulhar.
Os papos-cabeça podem acontecer em qualquer lugar. Ontem, por exemplo, estávamos indo para Hudson no carro do DW, quando começou uma discussão sobre identidades nacionais. O Mario, um escritor italiano que está aqui, disse:
- Sabe de uma coisa? Estou cansado dessas conversas todas sobre identidade, nacionalidade etc. E das brigas, das guerras por causa disso. É claro que quero saber quem foram meus ancestrais (o Mário é judeu). Mas não quero viver pensando nisso! Veja na Itália: o que ia acontecer se lugares como San Marino ou Andorra declarassem a independência? Claro que eles têm uma identidade própria. Mas pelo amor de Deus, San Marino tem três mil habitantes! Não sobrevive sozinho. Chega um ponto em que fica ridículo. Não existe nenhum país da Europa que não tenha várias identidades nacionais dentro dele. Mas será que a melhor idéia é se separar, arranjar uma moeda própria, um hino, e começar uma guerra com o vizinho do outro lado da rua? Quer saber, eu acho isso ridículo. Se a arte tem alguma função nesse mundo, é de transcender esse tipo de coisa, de achar o universal no homem.
- Também acho a mesma coisa, Mário – digo eu.
Silêncio no carro.
- Bom – diz, com um suspiro, a Draga, uma atriz e autora de peças – não vou nem começar a discutir esse assunto, Mário. Você não entenderia.
A Draga é eslovena. Mas nasceu na Croácia...