terça-feira, setembro 19, 2006

12 de setembro de 2006



Acho que está na hora de fazer um apanhado dos meus coleguinhas escritores da Ledig House. Por exemplo, aqui tem:
- Eu – Eu.
- Brigid Lowry – O Furacão Neozelandês, que não pára de se mexer, falar e rir. Ocasionalmente tem um piti. Calorosa, simpática, escreve livros para adolescentes e atualmente está começando um sobre a arte de escrever.



- Mario Fortunato – Judeu italiano. Uma figura: baixinho, sempre de óculos escuros e écharpe no pescoço. Tem uma visão aguda da vida, da literatura e da política.








- Luis Moreno-Caballud – Espanhol, vive nos EUA. Fez trinta anos no sábado, mas tem cara de bebê. Está escrevendo uma novela interessantíssima: a história de um professor universitário encarregado de manter uma aluna na faculdade, custe o que custar. O pai dela faz generosas doações para a universidade. Mas a menina tem uma doença misteriosa, que ninguém sabe qual é...



- Armin Senser– Suíço de língua alemão, vive em Berlim e é a cara do Roberto Begnini. Cheio de atitudes, irônico, um tanto desagradável. Por exemplo: aqui, todo mundo ajuda a arrumar a casa. Coisinhas básicas: limpar os pratos, botar no lavador de louça, dar uma varridinha de vez em quando etc. Pois ontem à noite, o Armin olhou com aquela cara de europeu enjoado pra cozinha e disse: “A gente tem mesmo que limpar aí? Por que eles não arranjam logo uma vietnamita pra fazer isso?”.
Rá rá. Muito engraçado, Armin.
- Anzhelina Polonskaya – Russa filha de alemão, muito bonita, morou na América Latina, fala um espanhol perfeito e só conseguiu publicar seus poemas fora da Rússia. Diz que odeia a Rússia, odeia seus compatriotas, não se sente russa etc.
Fui dar uma olhada nos seus poemas. São lindos. Lindos poemas russos.
- Dragica Potocnjak – Figurinha carimbada! A Draga é eslovena nascida na Croácia. Dramaturga e atriz, como dá para perceber pelo seu porte elegante. Nas primeiras conversas com ela, fiquei achando que era maluca. Primeiro, o cunhado tinha morrido na guerra. Ta; isso é triste, mas crível. Depois, ela bateu com a cabeça no chão do palco e ficou 48 dias na cama sem se mexer! Aí um vizinho dela passou dezessete anos ameaçando-a de morte e mandando cartas assustadoras (não entendi muito bem. Será que ela demorou todo esse tempo pra descobrir que era o vizinho?).
E depois uma árvore caiu na sua cabeça, e ela ficou 53 dias na cama sem se mexer.
Mas, apesar de todas essas histórias cabulosas, a Draga parece funcionar sem problemas. Ela está tentando escrever ficção agora.
- Wei Hui – Ficcionista chinesa, tem um cabelão. Vive entre a China e Manhattan. Chegou ontem de Xangai, ainda está com jet-lag, mas já começou a trabalhar. Veio para o jantar com uma blusa chinesa de seda incrível, maravilhosa, de babar. Quando eu elogiei, disse que usava a tal blusa para trabalhar na colheita, em seu país.
Será o possível, meu Deus?

14 de setembro de 2006

Uma crise: acabou o vinho! Nos reunimos e discutimos o assunto; fazemos longas conjeturas sobre o problema. Ninguém chega a nenhuma conclusão.
- Mas o DW tinha comprado duas caixas de vinho no sábado, em Hudson! – lembra o Mario. - Não comprou, Bridges? Não comprou, Dóris?
- Comprou, me lembro bem.
- Não é possível que a gente tenha bebido tudo isso.
- Impossível – concorda o Luís, que, quietinho, quietinho, entorna umas seis taças por noite.
Todos concordamos que o vinho do DW deve estar estocado em algum lugar. Procura que procura. Abrimos todos os armários e arcas da casa. Olhamos no porão, onde ficam as máquinas de lavar roupa e a caldeira... Nada.
Chega o Mark, um grandão simpático que, junto com a mulher, Vicki, é uma espécie de “governante” da Ledig House (os dois são artistas plásticos, também). Mark, você sabe onde está o vinho do DW? Nope.
Entramos no carro para dar uma voltinha na cidade (de vez em quando enjôa ficar trancado no meio do mato com um monte de escritores). Uma horripilante suspeita se insinua em minha mente...
- Meu Deus, será que a gente bebeu todo o vinho? – pergunto.
Ruídos de incredulidade. Não. Imagina. Impossível...
Ou será que bebemos mesmo?
- De repente a gente bebeu – assume o Mario.
- Nossa! – digo. – Se for assim, o caso é grave!
O Mark dá uma risadinha:
- ‘Magina, os artistas são muito piores. (A organização também tem um programa de residência para artistas plásticos, a cerca de um quilômetro daqui). A gente vai botando cerveja no refrigerador, e não vence. Enche a geladeira, dali a meia hora ela já está vazia.
- Bom, ainda não estamos tão mal...
À tarde, chega um e-mail do DW, esclarecendo tudo. As duas caixas de vinho que ele comprou são para o fim-de-semana, e estão cuidadosamente guardadas em algum lugar por aqui. Durante a semana, se quisermos beber, temos que comprar nosso próprio vinho.
Voltamos da cidade com várias garrafas.

Hoje a Brigid trouxe pra mim a primeira folha do outono, bem vermelhinha...

15 de setembro de 2006

Escritor brasileiro sofre. Sofre em casa e também quando viaja, conversa com colegas de outros países e vê que a vida deles é cem vezes melhor. Como é duro ser subdesenvolvido!
Só pra começo de conversa. Temos aqui, além de mim, sete escritores, todos publicados, nenhum particularmente rico ou famoso. Mas, desses sete, segundo entendi, pelo menos quatro vivem só de literatura. No Brasil, quem vive de literatura?
Aqui, ninguém precisa correr atrás de editor. O agente faz isso por eles. Não faz isso porque tem bom coração e quer ajudar a Literatura; faz porque ganha uma bela percentagem. Nesses países, a indústria editorial é um grande negócio e movimenta muita grana. Os editores lançam grandes tiragens, com papel mais barato e preços acessíveis. Fazem campanhas de lançamento do livro, mandam o autor pra cá e pra lá... Em outras palavras: fazem livro pra todo mundo, pras pessoas que estão na rua.
Já no Brasil, os grandes editores preferem pensar que as pessoas não lêem porque são burras e ignorantes e ainda não perceberam o valor superior do livro.
Aliás, eles de fato devem achar que o livro tem um valor superior, porque cobram um absurdo por ele.
Aí você vê os escritores aqui da Ledig House falando: “Meu livro novo vai estar em Frankfurt”, “Meu agente me telefonou para contar que minhas peças vão ser publicadas na Holanda”, “Meu último livro entrou na lista de candidatos ao prêmio Tal”, e começa a ficar verde de inveja. Não é uma sensação nada legal.

Hoje caiu a conexão wireless... está todo mundo desesperado, como se estivéssemos isolados do mundo.
Sabe como é, eles têm que ver a capa do seu último livro, conversar com seu tradutor, e mandar textos para um editor que está louco pra publicá-los.
Um cansaço.

16 de setembro de 2006

Ontem tivemos um jantar caprichado aqui na Ledig House. Veio inclusive a cozinheira tailandesa, que fez pratos deliciosos. Tínhamos um convidado especial: o editor alemão Wolfgang Ferchl, que representa um dos patrocinadores da casa.
Só hoje de manhã fiquei sabendo que o homem também é editor do João Silvério Trevisan na Alemanha (Ana em Veneza).

Esteve também aqui um editor de Nova York e a mulher dele, interessantíssima, Judith Thurman. Escreve pro New Yorker, esteve na Flip de Parati há dois anos.
Essa mulher biografou um ídolo meu: a escritora francesa Colette. Também escreveu uma biografia de muito sucesso sobre Karen Blixen ou Isaak Dinesen (a escritora de Out of África). Mas o seu próximo projeto eu achei mais fascinante ainda. Ela quer biografar uma amiga sua que nunca foi famosa; uma mulher que se casou com um de seus primos e terminou se suicidando. Seu nome era Laura e ela era transexual.
Laura começou a vida como homem, e depois se tornou uma mulher absolutamente fascinante, linda, do tipo que deixa os homens babando. “Ela com certeza era mais mulher do que eu”, resume a Judith. Fez a operação de mudança de sexo, cem por cento bem-sucedida. E, alguns anos depois, se matou.
Parece que existe uma taxa altíssima de suicídios entre transexuais que fazem a famosa operação. Por quê? perguntei eu. Por acaso eles se arrependem? Não, respondeu a Judith, não é o caso de se arrepender. O problema é que passam a vida inteira sonhando com isso. Idealizam o dia em que finalmente não se sentirão mais presos num corpo de homem... Acham que ser mulher é a coisa mais maravilhosa do mundo, um estado superior do ser humano.
E aí se tornam mulheres (ou algo bem próximo), e descobrem que elas também têm problemas, angústias, desilusões amorosas etc.
Seja como for, essa mulher, a Laura, parece ter sido uma personalidade fascinante. Nunca foi à escola, vinha de uma família pobre de portorriquenhos, mas era muito inteligente. No seu enterro, um dos seus irmãos – um ex-Marine tatuado da cabeça aos pés – fez um discurso fúnebre maravilhoso, sem usar um só pronome pessoal. Nem “ele” nem “ela”.
A maioria das pessoas que estavam ali não sabia que Laura já tinha sido um homem.
O projeto me pareceu incrível, uma puta idéia. Até hoje não desisti de fazer jornalismo literário, que era meu sonho na faculdade... Um dia, quem sabe?

18 de setembro de 2006

Ontem o Luis foi embora, que pena – ele é uma gracinha de pessoa. À noite chegou o nosso novo pensionista, o Kjell Westö, poeta e ficcionista finlandês (o primeiro finlandês que conheço na minha vida).
Estávamos à mesa quando ele chegou. Aliás, a comida é um capítulo à parte aqui em Ledig House: nunca vi tanta, em toda minha vida. Nunca. Eles compram trezentas marcas de pão (a maioria integral, mas se quiser branco, tem), oitocentas de cereais, mil e oitocentas de iogurte, queijos de todos tipo (inclusive franceses, que são minha paixão), leite, chocolate, frutas, patê (americano adora homus, aquela pasta árabe de grão-de-bico), biscoitos, geléias, sucos... Tudo isso fica estocado numa enorme geladeira, e serve pro café-da-manhã e pro almoço.
Aí vem o jantar, às sete e meia. Cada dia tem um cozinheiro diferente, cada qual com seu estilo. A tailandesa com seus pratos exóticos; uma açoriana simpaticíssima, a Rita, que ontem nos ofereceu uma coisa muito parecida com pastéis de Santa Clara; um cara chamado Tommy, que faz uns rosbifes da hora...
Por mais que o pessoal consuma, sobra comida, e a gente fica se sentindo culpada... Outro dia estragou uma magnífica posta de salmão. É a velha história: quantas pessoas não têm nem o que comer, e nós aqui, deixando o salmão estragar!
E aí, pra resolver o problema da fome no mundo, você come feito um condenado.
Mas estou tentando maneirar... e comecei umas caminhadas pelos arredores. Senão, viro a Talentosa Escritora Brasileira Gorda.