terça-feira, novembro 28, 2006

AINDA ESTOU AQUI

Dóris Fleury

O tempo voa quando a gente se diverte...
Parece que foi ontem. Eu fiz minhas malas. Me despedi dos amigos. Minha mãe me encheu de conselhos, e terminou com essa sutil advertência: “E não fique andando por aí com essa cara de distraída, que acaba sendo assaltada!”.
Conhecendo meu nível de alheamento ao mundo, ela e meu pai estavam convencidos que, na grande cidade, eu seria assaltada, atropelada, raptada... ou no mínimo perderia o endereço de casa, e nunca mais voltaria.
Nada disso aconteceu comigo. Sobrevivi.
Parece mesmo que foi ontem: a primeira coisa que estranhei foi o frio. Naquela época era pior do que hoje. Vinda do calor do Noroeste de São Paulo, eu odiei os invernos.
No começo, só aprendi um caminho: entre minha casa e a faculdade. Saindo desse circuito, me perdia, e tinha que ser guiada pelos amigos que, felizmente, não demorei a fazer. E se não houvesse amigo por perto, sempre podia recorrer, como diria a outra, à bondade de estranhos.
Eu estranhava tudo. Andava na Avenida Paulista boquiaberta, deslumbrada pelos edifícios imensos, bem caipira mesmo. Na minha cidade não tinha disso. Na minha cidade também não tinha mendigo, favela, criança pedindo esmola em sinal (hoje tem tudo isso, o progresso já chegou lá...).
Isso eu também estranhava. Estranho até hoje.
Experimentei a fascinante experiência de sumir da multidão. Vagando pelas ruas da grande cidade, adquiri um vício do qual nunca me livrei: olhar as pessoas, observá-las, contemplar as milhares de caras da metrópole. Ouvir seus sotaques diversos: o cantado nordestino, o italianado da Zona Leste, os erres caipiras dos quais, naquela época, eu tentava me livrar. (Nunca consegui. Hoje tenho orgulho deles).
As janelas iluminadas, à noite, me fascinavam. Quem moraria naqueles lugares? O que pensariam? Como levariam a vida?
E eu imaginava mil coisas sobre aquelas pessoas.
Morei no Paraíso, morei na Cidade Universitária, morei em Pinheiros por um tempão. Quinta-feira tinha aula à noite, e me lembro até hoje da sensação de descer a Rebouças de ônibus, vendo lá no fim da avenida as luzes do Jóquei Clube. Eu me sentia no centro do mundo.
Nunca tive medo de andar em São Paulo: olho pros lados, saco o ambiente e vou em frente. Precisando, me viro. Já chutei trombadinha pra fora do ônibus.
Também nunca aderi à paranóia da segurança: moro em casa, com dois cachorros totalmente bobões. Trânsito? Pra mim não é problema. Detesto andar de carro, prefiro o metrô.
Não saio daqui nem por decreto. Mais paulistana do que qualquer nativo, não abro mão de nenhum dos programas típicos da cidade. Aproveito todos, dos bem trash (fazer compras na 25 de Março), passando pelos ecológicos (ir com a família ao Ibirapuera), consumistas (passear no shopping, caipira adora shopping) culturosos (enfiar o nariz numa livraria, de preferência a Cultura) ou simplesmente boêmios (bares da Vila Madalena).
Quase todas as minhas histórias se passam em São Paulo. Nunca perdi o estranhamento, estou sempre me espantando com essa cidade. É grande, é louca, é perigosa. Mas também é um lugar onde dá pra sonhar com tudo, fazer qualquer projeto; e sempre se arranja uns malucos que embarcam na história com você.
Por exemplo: um amigo meu, o Richard Diegues, resolveu montar uma coletânea só com textos sobre São Paulo. Chamou cinqüenta escritores, inclusive eu. O resultado foi o Visões de São Paulo, que será lançado no próximo sábado, dia 2 de dezembro, às 19 horas, em coquetel na Casa das Rosas, número 37 da Avenida Paulista. Endereço mais paulistano, impossível.
Vale a pena ir e comprar o livro. E sabem por quê? Porque ele é bom, tem cinqüenta ótimos textos. E também porque São Paulo deixa as pessoas boquiabertas, com sua grandeza, sua generosidade, suas loucuras, suas misérias. Estou aqui há vinte e sete anos aqui e ainda não parei de me espantar.
E aliás, gostaria de aproveitar a oportunidade pra mandar um recado pra minha mãe.
Mamãe, escapei do atropelamento. Mamãe, assaltada mesmo mesmo ainda não fui. E ninguém se interessou em me raptar, não sei porquê...
Mas não volto mais pra casa, mamãe. Não volto nunca mais.
Minha casa agora é aqui.

P.S. - Além desse lançamento coletivo, no dia 14 de dezembro estarei participando de um individual: o lançamento do meu livro de contos "A Maldição das Cadeiras de Plástico", pelo selo Além da Letra. O cenário também é SP. Aguardem.