quinta-feira, junho 22, 2006

ROGÉRIO AUGUSTO ESTRÉIA NA TURMA DA GROSELHA

Finalmente consegui atrair (com promessas de um cachê milionário) mais um grande escritor para o blog da Turma da Groselha. Com vocês, Rogério Augusto, meu colega do grupo Tudo Lorota. Rogério Augusto é um grande escritor que escreve pequenos contos. E "pequenos" que eu digo é no tamanho mesmo. Estilísticamente, são grandes contos. Obras-primas da ourivesaria da palavra, exata e minuciosa. E agora ele decidiu tentar a crônica! Não é legal? Vamos torcer para que ele volte sempre. Mesmo depois de descobrir que o cachê não é lá essas coisas...

Ah, o blog do Rogério, onde vocês podem ler os seus melhores contos, é o "Além da Rua". Cliquem no link ao lado para dar uma olhada!

ASSASSINATO NO PARAÍSO


Rogério Augusto

Fecharam as portas do cine Paraíso. Nunca mais Mrs. Robinsons em tardes adúlteras, beijos no templo escuro. Nem Cabírias em busca de novos amores, coração de clown saltando pela boca a cada olhar prolongado de Robert Redfords. Adeus Querelles, mãos bobas escorregando pelas poltronas vermelhas do canto esquerdo da sala, reservadas ao profano. Lembram do Indiana Jones? Incompreendidos gazetando no lugar das aulas de álgebra. Escapadas do colégio para ver o herói em busca do cálice sagrado sem deixar o chapéu cair. Sabe quem também passou por lá? O Macunaíma e a Macabéa. O Paraíso era generoso. Recebia nossos rareados tupiniquins de braços abertos. Foi lá que vi a primeira mulher nua da minha vida, disse meu tio. Filme proibido. O bilheteiro-lanterninha deixava a garotada entrar e assistir à Anita Ekberg banhando-se na Fontana de Trevi. Vocês acreditam que aquilo era mulher nua? Marta conheceu Alonso numa sessão concorrida de O Bebê de Rosemary. Flerte na fila quilométrica, paixão imediata, casamento antecipado pela barriga cheia. Ana Rita não perdia um Bergman. Depois se tornou fã de Woody Allen. Para ela, pipoca sempre combinou com divã improvisado. Até o Júnior Canivete, famoso bandido do bairro nos anos 80, matou sua família e foi ao Paraíso. Esconderijo seguro, Intocáveis na tela e a faca na mão. Agora que o projetor está desligado, resta saber se o Paraíso vai virar igreja evangélica ou casa de bingo. Será que aquela moça de cabelo oxigenado é a Julia Roberts com sua boca imensa, cantando os números sorteados do painel eletrônico. O senhor de gel no cabelo e olhos bem fechados não será Tom Cruise expulsando os demônios de Nicole Kidman? Ontem aconteceu uma sessão de despedida. Os cinéfilos fiéis da cidade e freqüentadores assíduos do Paraíso seguiram em romaria para fazer a última fila do cinema. Assistiram ao filme Estrela Solitária, de Wim Wenders. Quando o projetor se apagou, uma salva de palmas tomou conta da sala. Depois todos saíram, as luzes se apagaram. Cenário pronto para um crime perfeito.

quarta-feira, junho 21, 2006

A TERRORISTA



Dóris Fleury

Trinta anos atrás, quando Dona Arminda foi trabalhar no INPS, era jovem, bonita e recém-casada. Entrou no funcionalismo cheia de esperança. O emprego de ascensorista não era grande coisa, é verdade, mas ela só tinha ginasial. Com a ajuda de Deus e um bom supletivo, faria um concurso e subiria na vida – sem trocadilho!
O salário não era grande coisa, mas o Valmir também trabalhava.
Corte para hoje, 2006. O INPS virou INSS. O elevador foi trocado, e agora tem botõezinhos luminosos. Mas Dona Arminda continua lá dentro. Nunca conseguiu uma promoção. Engordou, e não sorri há vinte anos. Aos mais bem-educados, que tentam cumprimentá-la, responde com um grunhido.
Dona Arminda ainda usa aliança. Ninguém é obrigado a adivinhar que o Valmir fugiu, em 86 justamente, com uma moça bem mais jovem que ela... Também não era grande coisa como marido: além de andar com outras mulheres, deu pra beber, perdeu o emprego e deixou toda a responsabilidade dos filhos – Emerson e Sabrina – nas costas da Dona Arminda.
Outra coisa que o pessoal da repartição não sabe é que o Emerson, coitado, tinha um bom emprego, mas foi despedido do emprego do banco quando houve aquele corte grande, cinco anos atrás. Desde então, vive de biscates e da ajuda da mãe. E a Sabrina... bom, melhor nem falar da Sabrina.
Mas o pessoal bem que podia imaginar – e na verdade, até imagina – que o estado mental dessa mulher, depois de trinta anos numa caixa escura, sem promoção, sem ventilação, subindo e descendo sem parar, não deve estar lá grande coisa.
Os funcionários do SUS têm um vago medo da Dona Arminda. Nunca tentaram envolvê-la nas brincadeiras da repartição, nem perguntar da família. É verdade que ainda não desistiram de convidá-la para o amigo secreto, no fim do ano. Mas convidam só por educação.
Ou será por medo?
De qualquer jeito, ela nunca aceita.
Quinze anos atrás, Dona Arminda fazia tricô. Ficava sentada num banquinho alto, manipulando os botões do painel sem nem precisar olhar para eles. Depois, passou às palavras cruzadas.
Mas aí, algum burocrata de plantão decidiu tirar o banquinho de Dona Arminda. Ela agora tem que trabalhar de pé o dia inteiro. E foi aí que ela arranjou um passatempo compatível com sua nova posição.
Dona Arminda descobriu os prazeres do plástico-bolha.

Hoje em dia, quem entra pela primeira vez neste elevador é surpreendido por essa estranha visão: a mulher gorda, de uniforme escuro, que entre uma subida e uma descida estoura, com ar feroz, folhas e mais folhas daquele plástico cheio de bolhinhas de ar, normalmente usado para embalagens.
- Pufff!
Essa é Dona Arminda, estourando suas bolhas. Parece que ela arruma o plástico-bolha na Seção de Expediente. O pessoal da repartição, que já tinha medo dela, ficou ainda mais intimidado. Entram de cabeça baixa, sem dizer nada. Por mais que o papo esteja animado do lado de fora, aqui dentro ele murcha. Sobra só aquele barulho explosivo, raivoso:
- Puff!
E todo mundo cala a boca.

Bom, essa é a história de Dona Arminda. Mas o pessoal dos jornais e da televisão, que está acompanhando o drama do elevador seqüestrado pela ascensorista do SUS, não sabe de nada disso. Emerson, o filho, em lágrimas diante das câmeras, jura que a mãe sempre foi de boa paz.
- Mas ela vai soltar os reféns?
Emerson só chora.
- Sua mãe estava com algum problema?
- É verdade que ela tem uma granada?
- Emerson, você acha que sua mãe é ligada ao PCC?
- 'Magina, moça, que é isso! Minha mãe é trabalhadora, viu?
- Emerson, estão me informando que você tem uma irmã... Ela está aqui?
- A Sabrina? Melhor nem falar dela!
É nesse momento que há um zumzum-zum no meio dos repórteres:
- Saiu a reivindicação da Dona Arminda!
- Saiu? O que ela quer?
- Major, o senhor pode explicar aos nossos espectadores quais são as exigências da seqüestradora?
O major da PM, veterano de rebeliões e seqüestros, balança a cabeça, desnorteado:
- Olha, nem eu estou entendendo. É uma história de plástico-bolha!
- Plástico-bolha?
- É, isso mesmo. Diz que acabou na Expedição.... Ela quer duzentas folhas, e já! Senão, vai soltar o pino da granada e explodir o prédio inteiro!
Repórteres e policiais se entreolham, desnorteados. No silêncio, só se ouvem as sirenes dos camburões. E o choro do Émerson.