terça-feira, setembro 26, 2006

19 de setembro de 2006


A estrela da noite foi a nova residente, a jornalista americana Stephanie Elizondo Griest, que escreve livros sobre suas viagens pelo mundo. O próximo é sobre a “revolução silenciosa” no México. Pouca gente sabe, mas em muitos lugares desse país, o povo virou as costas para o governo corrupto e ineficiente e partiu para a autogestão.
A mulher é ótima: aquele tipo de esquerda americana que, se por um lado é muito idealista, por outro lado tem um saudável lado pragmático.

A Ledig House é uma das poucas experiências na minha vida das quais eu esperava muito, e que acabou me saindo melhor ainda!
Se eu pudesse citar uma decepção com essa temporada, seria o fato de que meus colegas residentes não discutem seus projetos literários comigo. “O que você está fazendo?”, pergunto, e geralmente recebo uma resposta vaga. Hoje o Kjell me deu uma explicação para esse tipo de atitude: as pessoas têm medo que suas idéias sejam roubadas. “Eu mesmo já fui assim”, confessou. “Mas com o tempo percebi que, mesmo que alguém roube a minha idéia, só eu posso escrever aquele livro”.
Garoto esperto... (apenas 45 anos).

20 de setembro de 2006

Meu romance está chegando ao fim e isso me assusta. Achava que no máximo ia dar uma boa adiantada... Mas um terço do livro, na verdade, já estava pronto quando eu cheguei aqui.
Esse livro está parado há um ano. Eu achava que o projeto estava em coma. Mas este tempo todo ele estava sendo escrito na minha cabeça. Quando você é escritor, boa parte de suas escolhas acontece em nível subconsciente. Tive essa oportunidade pra escrever e a coisa veio automaticamente.
Na Ledig House, me impus um ritmo de dez páginas por dia. Nessa toada, qualquer um acaba um livro rapidinho. Mas tem seus custos. Não tive um dia de descanso desde que cheguei aqui. Em algum momento vou ter que tirar um dia de folga. Estou exausta. Preciso parar de escrever à noite, pelo menos o romance. Ficar escrevendo me deixa ligadona, e depois não consigo dormir.
Enquanto isso, muitos dos meus colegas estão flanando. Mas a organização não se importa, acha que faz parte. A filosofia aqui não é de campo de trabalhos forçados. E faz sentido, pensem bem: como é que você vai pedir a um poeta, como o Armin ou a Anzhelina, que sente ao computador e escreva o tempo todo? Seria ridículo.
Nem ficcionistas não funcionam desse jeito. O Luis, aquele espanhol que já foi embora, veio aqui para fazer apenas o planejamento de seu próximo romance.
Uma vez pronto, não sei o que vou fazer com o livro. Já estou vendo o seu triste destino. As editoras especializadas em ficção científica, fantasia, etc, vão torcer o nariz, achando que ele é muito “cabeça”; que não é coisa pra nerd, enfim. As editoras sérias, só de ouvir a expressão “ficção científica”, vão tampar o nariz, porque isso não é coisa de escritor “sério” nesse país. Estou fodida e mal paga.
Mas não importa; mesmo assim, estou feliz com o que escrevi. É um livro que acontece em muitos níveis, uma ficção científica escrita sob o ponto-de-vista feminino (de várias mulheres, as mais diferentes possíveis), com uma narrativa pouco convencional, de várias vozes, e que acontece em muitos lugares do mundo ao mesmo tempo. Se tudo der certo, meus leitores começarão o livro achando que estão lendo FC; no meio dele, descobrirão outros sentidos para a história.
Da próxima vez, quero escrever um romance “de verdade”, bem compacto, só pra provar a mim mesma que sei fazer isso. Depois volto para meu objetivo literário, que é borrar de bagunçar estruturas.
Tem tanta coisa pra fazer, que às vezes eu me pego pensando: porra, já tenho 44 anos! Será que consigo fazer tudo isso? Que bosta! E se eu morrer antes? Já imaginou a sacanagem?

22 de setembro de 2006


Os americanos abrem estradas nessa região tão linda, compram uns carrões possantes (nunca vi tantos utilitários como aqui, haja gasolina, não é à-toa que eles precisam invadir o Iraque), correm feito loucos, e o resultado é um massacre cotidiano de animais. Só hoje, na minha caminhada diária, vi dois passarinhos, um coelho e um guaxinim mortos. Atropelados. É de cortar o coração. O que fizeram os bichinhos para merecer uma morte dessas?

Ontem estava conversando com a Rose, a moça que faz a limpeza aqui. Ela tem, pasmem, senhores, cinco filhos. Que coragem. Todos eles são “home-schooled”, ou seja, ensinados em casa, e não vão pra escola. É muito simples. Você comunica a sua opção pra Secretaria da Educação da sua cidade, ou seja lá como se chame esse órgão, e eles são obrigados a fornecer todo o material e orientações pra você ensinar as crianças em casa. E os filhos dela estão bem, entraram em universidades; pode não ser Ivy League, mas eles se viraram.
Eu já tinha ouvido falar dessa história, mas sempre achei que era coisa de puritanos fanáticos que não queriam que seus filhos se corrompessem, aprendessem Teoria da Evolução etc. A Rose não parece desse tipo – senão acho que nem estaria na Ledig House. Ela disse que hoje em dia os professores não têm o menor controle sobre a molecada e o ensino é muito ruim, eles acabam não aprendendo nada.
Claro que isso implicou um tremendo sacrifício pessoal. Ela e o marido viviam trancados em casa, ensinando a molecada.
Acho que até entendo as razões deles, mas que numa grande cidade seria impossível fazer isso. As crianças viveriam trancadas num apartamento, não teriam amigos, seria um horror. Num lugar como esse, você solta os filhos na rua e tudo bem, eles vão ser como qualquer outro moleque. Mesmo assim, acho uma opção temerária.

Resolvi acrescentar mais uns capítulos ao meu romance. Vai ter um monte de andróides. Adoro andróide!

23 de setembro de 2006

Minha estadia na Ledig House está chegando ao fim. Faltam só cinco dias. O que é bom, porque já estou com saudade de casa. Hoje minha filha me ligou pra dizer que está morrendo de saudades de mim, também. (Garanto que ela diz isso pra todas as suas mães...)
Amanhã vou me dar um dia de folga.

Estou aqui na Ledig House feito uma esponja. Assim que chega uma pessoa nova, salto em cima, pra saber quem ela é, o que já fez, o que está escrevendo, de onde vem, como são as coisas no seu país... Minha curiosidade não acaba mais.
Hoje chegou uma australiana, a Robbi Neal. Outra figurinha carimbada, que teve uma vida louquíssima: foi pentecostal, casou com dezenove anos, depois virou ministra da Igreja, fugiu com um viciado em heroína, teve câncer, escreveu sua autobiografia, e hoje vive casada e feliz com cinco filhos. Cinco! Nossa Senhora! Depois dizem que somos nós, do Terceiro Mundo, que causamos a superpopulação.
A Robbi recentemente fez um cruzeiro com o marido dela e nos contou umas histórias escabrosas sobre esses navios. Nunca mais embarco num, Deus me livre e guarde.
Diz ela que, pra começo de conversa, existem ali dois tipos de tripulação: a dos chefes, composta de australianos e gente do Primeiro Mundo em geral; e a do proletariado, digamos assim, que vem de países tipo Indonésia e exercem trabalho escravo. Escravo mesmo. Você chega e tem de trabalhar a troco de nada, porque está “devendo” não sei quanto pra empresa. E depois só ganha as gorjetas que os passageiros te dão. Agora, na Austrália em particular, não existe o hábito de dar gorjetas; então esses caras não ganham nada e são maltratados tanto pelos chefes como pelos passageiros.
O tipo de gente que embarca nesses navios é trashão. As mulheres fazem o gênero jovem-perua-cheia-de-amor-pra-dar. Os homens bebem de manhã até de noite; o bar fica aberto das nove da manhã às quatro da madrugada e o breakfast deles é cerveja. Se você andar sozinha no navio, tá ferrada, porque eles tentam te agarrar.
Não é brincadeira não, outro dia estupraram e mataram uma mulher dentro de um navio desses.
Todo ano, é estatístico, seiscentos passageiros somem dentro desses navios. Somem mesmo. Não se sabe se ficaram nos portos onde o navio parou, se caíram do barco, se foram assassinados lá dentro...
Aí vocês vão perguntar: e não acontece nada com os responsáveis? Não, porque eles pertencem a uma grande multinacional. E esta, por sua vez, faz os navios navegarem com a bandeira de um desses países que não têm lei trabalhista nenhuma, e que jamais faria uma investigação séria sobre os tais cruzeiros. Você vai reclamar pro bispo.
Gente, que horror. A tal da globalização instaurou a lei da selva nesse planeta.

Também hoje chegou o Jens Schafer, um ficcionista alemão.

Outra fonte de histórias é a Stephanie. A menina é rodadíssima. Já morou na China e na Rússia e escreveu livros sobre esses lugares; mas pra mim a história mais interessante que ela contou se passou nos EUA.
Diz que as editoras aqui, principalmente as mais comerciais, vivem atrás da “next big thing”, ou seja, aquele jovem e talentoso escritor que vai fazer elas ganharem milhões. E aí começam a fazer como na Bolsa de Valores. Ficam inflando ações, digo, escritores, que não têm nenhum valor comprovado.
Exemplifico. A Stephanie nos contou a história de uma jovem escritora, aluna de uma grande universidade, que vendeu os direitos de seu próximo romance para uma editora, antes de ter escrito a coisa. Até aí nada de anormal, isso acontece até no Brasil. A novidade foi que essa menina:

a. ganhou um adiantamento de várias centenas de milhares de dólares;
b. tinha apenas uma idéia para a história, mais nada; mas seu professor na Universidade achava que a menina era um gênio.
c. tinha dezoito anos e nunca tinha escrito nada!

Claro que não foi capaz de cumprir o contrato.
Aí vocês dirão: coitada da editora, ficou micada. Mas de jeito nenhum! Venderam o pacote especulativo todo: a menina, mais a sua idéia, mais os direitos do livro, e do filme inspirado no livro, pra uma segunda editora, por uma fortuna. Final feliz pra eles.
Pois é, especulação também existe no mundo dos livros...

25 de setembro de 2006



As folhas das árvores estão fazendo seu último vôo rumo ao chão. É bonito de se ver. Daqui a pouco fica tudo vermelho e amarelo, mas não vou pegar essa parte...
Já comprei minha passagem de trem para Nova York.

Hoje a Brigid foi embora, que pena. Vou sentir a maior falta dela. Saiu antes da hora.
Com a Brigid e a Robin, estou vendo que nem sempre é fácil você sair do seu país e conviver com outros escritores - alguns dos quais, naturalmente, vão esnobar você. Elas se deixaram intimidar.
Cara, quando você está fora do seu país, tem que conhecer sua identidade cultural, saber de onde vem, e ter um bocado de auto-estima. Eu já cheguei aqui deixando bem claro que não me considero inferior a ninguém. E faço questão de falar sempre da literatura brasileira, dos grandes escritores tipo Guimarães Rosa etc.
Não é patriotada. É pra neguinho ficar esperto: demorou quinhentos anos pra fazer a Dóris Fleury.
Mas, em geral, brasileiro quando está fora do seu país assume o complexo de vira-lata, como diria o Nélson Rodrigues. (Hoje em dia a gente poderia chamar de “complexo de Manhattan Conection...”)É tão ridículo. Só falta pedir desculpas por existir.