terça-feira, julho 18, 2006

PEGADAS NA AREIA

Não se iludam, crianças: em pleno século 21, o Brasil continua sendo um país autoritário ao velho estilo. É cada um no lugarzinho que a sociedade determinou, e ai de quem tentar sair. (Principalmente se a tentativa for coletiva; individual, eles até perdoam). E uma das formas mais simples de preservar esse estado de coisas é apagar a memória, o passado das pessoas. Apagar sua identidade.
Tô cheia de amigos queridos, pessoas excelentes aliás, que pensam que estão vivendo numa versão pobre de Nova York, com legendas traduzidas, sei lá. Os caras não têm a menor idéia do que significa ser brasileiro. Já leram a obra completa do Bukowski, mas nem passaram perto do Lima Barreto.
E se não tem idéia da sua própria identidade, que dirá da dos seus antepassados.
Aqui em São Paulo, de forma geral, as pessoas chegaram de duas formas: ou no pau-de-arara, ou nos navios de imigrantes. Quem não é descendente de nordestinos, é de italiano. Ou de árabe, espanhol, português etc. Isso se não for de família quatrocentona: alguém aí é? No início do século 20, se falava mais italiano do que português nesta cidade...
Mas o Brasil, se por um lado ofereceu um novo lar a esses imigrantes, por outro lado passou sua identidade no liquidificador. Hoje, as pessoas já esqueceram essas histórias. Apagaram a memória dos avós ou bisavós que chegaram aqui com uma mão atrás e outra na frente, e deram duro para proporcionar aos seus filhos uma vida um pouco melhor.... E esse apagamento acontece com uma velocidade impressionante.
Uma vez fui fazer uma matéria sobre imigração com duas professoras que eram filhas – eu disse FILHAS - de libaneses. Elas davam aula num colégio de Estado. Gente, vou contar uma coisa: até hoje estou com raiva dessas duas. Como diria a minha irmã, elas não sabiam nem a hora da janta.
Onde vocês moravam, lá no Líbano? “Ah, numa aldeia aí... Não sei direito o nome...” E o que os seus avós faziam lá? “Ah, a gente não tem idéia...”. E por que vieram pra cá? “Sei lá... A gente não sabe essas histórias... Não somos muito de cultuar o passado, sabe?”.
Cultuar o passado. Eu tinha excursionado até Carapicuíba para entrevistar duas antas diplomadas que não “cultuavam o passado”, ou seja, não tinham a mínima idéia de onde vinham nem de quem eram. E elas eram professoras. Ensinavam crianças que provavelmente também aprenderiam a não “cultuar o passado”, ou seja, a apagar a sua História, desistir da sua identidade, e comprar a idéia de que tanto faz ter nascido aqui como em Nova York. Afinal, dá tudo na mesma. O mundo globalizado é um só e as gentes também. Ninguém tem identidade, ninguém tem antepassados ou história de família. Ninguém é ninguém. Com sorte, quem sabe não vira uma griffe?

Todo esse desabafo só para contar que, nesse fim-de-semana, estive no Museu da Imigração, lá no Brás; e que ali, recuperei a história de um italiano que veio para o Brasil.
Ele se chamava Ângelo Diana. Praticamente inaugurou a Hospedaria dos Imigrantes: chegou em 1888, e a Hospedaria, destinada a acolher o pessoal que vinha trabalhar nas fazendas da elite cafeeira, ficou pronta em 1887. Chegou sozinho, sem família, proveniente de Udine, na Itália. Ao que tudo indica, veio com a roupa do corpo, cansado da polenta da terra natal (dieta única dos camponeses italianos, naquela época). Reza a lenda familiar que embarcou clandestino, entrando num barril de vinho vazio. Veio fugindo de uma guerra colonial estúpida, e do destino de virar bucha de canhão.
Ângelo tinha dezenove anos. Era meu bisavô.
Ao contrário das professoras de Carapicuíba que “não cultuam” o passado, descendo de uma família de orgulhosos ítalo-caipiras que cultuou o seu por quatro gerações. Já estamos passando a história do Ângelo para seus trisnetos. Mas como uma família tão grande e tão espalhada conserva seu passado? Simples: pela tradição oral.
De uns tempos para cá, vários descendentes do Ângelo começaram a pesquisar e procurar suas raízes. É uma procura desinteressada: ninguém, até onde eu saiba, quer virar cidadão italiano. A gente não é mais italiano, é brasileiro. Mas queremos ser brasileiros que se conhecem, que sabem de onde vêm, e que talvez assim, quem sabe, tenham uma idéia de para onde vão!
Tenho RG, CPF e passaporte que me identificam como cidadã brasileira, nascida em Sorocaba, no Estado de São Paulo. No sábado, ganhei mais um documento: um certificado de passagem do meu bisavô pela Hospedaria dos Imigrantes.
Este documento é meu. Meu e da minha avó Conceição, que nunca pôde vê-lo. Meu e da minha mãe. Meu e de meus irmãos. Meu e da Marília, minha filha; do Gabriel, meu sobrinho; e de todos os meus outros sobrinhos e primos.
Dá pra sentir o valor desse papel?
No mesmo dia em que cheguei lá, várias pessoas passaram pelo escritório da Dona Midori, uma simpática funcionária que localizou rapidamente meu bisavô naquela massa imensa de imigrantes que passou por lá. Provavelmente o avô ou bisavô de Dona Midori também passou por lá um dia: pobre, faminto, destituído, deslocado num país estrangeiro, sozinho ou com a filharada atrás.
Poucas vezes vi tanta gente saindo de uma repartição do governo com uma cara tão feliz. Velhos e moços, todos exibiam orgulhosamente seu certificado, mostravam pros filhos, e recuperavam sua História.
Com dois reais vocês entram nesse lugar. Mais dez, e saem de lá com um pedaço importante da sua identidade. Mesmo nesses tempos de pouca grana, vale cada centavo. Porque ninguém, absolutamente ninguém, nasceu por geração espontânea. Ninguém é produto, griffe nem marca.
Somos, isso sim, seres humanos mergulhados na História.