sexta-feira, janeiro 27, 2006

O INQUILINO

Certa vez, prenderam-me

Jean Canesqui

<> Certa vez, eu aluguei meu quarto para um diabo.
Entendam bem. Não era o Diabo. O Senhor das trevas em si. Era um diabo. Não um arquiduque ou conde das províncias danadas. Um demônio menor. Somente.
Também não cedi exatamente meu quarto, minha alcova. Aluguei o cômodo superior, o sótão, desocupado há muito, apesar de intuir que ele preferiria talvez o porão.
Já estava velho e como não casei e nem procriei, acostumei-me ao silêncio e a solidão. Porém, um dia me vi mal do bolso e resolvi dar utilidade ao quarto vazio em cima de mim.
O diabo bateu a porta no dia seguinte ao anúncio impresso.
Escolheu a carne de um burguês educado e doce, cuja única característica de sua demonidade eram as unhas de ferro negro.
- Ah! Disse-me _ Existem certas coisas do estilo pessoal que não são traficáveis.
E foi honesto! Contradizendo o preconceito popular a afligir fama ruim sobre a diabada.
Falou logo de entrada quem era, o que era e o seu desejo. Sem meandro. De maneira a lhe acreditar sem me espantar: Era simplesmente um diabo que atendeu meu anúncio.
Fiquei preocupado com o destino de minha alma se negociarmos, mas assegurou-me estar de férias neste plano da criação e que meu espírito apenas correria risco se fosse uma missão oficial, chancelada pelo Inferno, com os selos e os certificados.
Pensei. Exalava uma sinceridade hoje tão rara, tão nostálgica... Aceitei.
Afinal, ofereceu-me uma proposta bem acima do mercado.
- Mas porque meu sobrado?
Levou-me até a grande janela do cômodo e apontou para o predinho a frente, morro a baixo.
Lá vi a mulher, minha desconhecida vizinha, cuidando de sua vida.
O diabo se apaixonou. <>

Tocado, fui convencido. E ele se instalou e lá ficou por um ano. O que equivale a uma semana para aqueles que são eternos.
Inquilino tranqüilo. Exemplar e desejável. Dividia seu tempo a observar a mulher, pela qual sofria de verdadeira excitação quando via as circunferências de seu joelho nu, a papear comigo nas noites tontas e dormia pelas manhãs (Eu acho. Aliás, diabos dormem?).
Nos nossos papos fiquei sabendo das coisas do outro mundo:
Que o Céu e o Inferno, apesar de imensuráveis, detêm a mesma medida.
O Céu não triunfa sobre o Inferno, pois é estático e não se move em direção nenhuma ou se altera em qualidade alguma, esperando algo de terrível ou de glorioso.
O Inferno por sua vez se esquiva da vitória, pois está em constante e inútil guerra civil, apesar de uma grande hierarquia ser respeitada entre os reboliços e revoluções.
Lúcifer impera, Satã, Belzebu e outros fazem a corte e governo de desmandos sobre as legiões e fileiras sombrias.
Como meu amigo diabo não estava a serviço, somente relaxando, acreditei em cada palavra. E perguntei:
- E como é Lúcifer?
- Eu não caí, quando os primeiros caíram. Eu nasci no abismo como bilhões de outros e como estes bilhões, nunca vi a Estrela da Manhã nos liderar. Aliás, nunca o vi. Nunca fui ao seu palácio de gelo calcinante, pois há sempre uma circular multidão de condenados e de diabos entre ele e eu, que não costumo sair muito longe de minha cloaca na periferia infernal.
- Nunca viu seu mestre?
- Às vezes, de onde estou vejo sua luz sobre os corpos que acotovelam como um farol cuja centelha é um sol frio. Eu acho que é dele esse brilho.
- Então, Lúcifer é tanto um mito para vocês como para nós vivos...
Explicou-me, para meu esclarecimento que o mesmo sentimento, o qual comete a plebe do Inferno, também parecer ocorrer na concorrência. A maioria dos anjos e dos eleitos em relação ao Criador, O qual nunca viram além das emanações do brilho de Sua glória. <>

No fim do prazo de locação estipulado no contrato, despedimos-nos. Ele gostaria de ficar mais tempo, porém as férias são findas e as obrigações aguardam. Eu também gostaria. É difícil se desacostumar a boa conversa e voltar ao solóquio bobo. Estávamos na porta.
- O que vai fazer, agora?
- A praxe: corromper, desesperar, desvirtuar e guerrear. Talvez arquitete algum novo engenho de dor. São atividades divertidas e muito gratificantes...
Suspirou entediado.
- E ela?
Apontei para o predinho. Eu acabei conhecendo tão bem da vida da amada do diabo e mesmo sem ter travado qualquer conversa me sentiria a vontade para ir ter com ela, assim de sopetão. Secretária, a mulher coleciona livros espíritas, cultiva violetas e outras florzinhas. Pensa em ser crente, pois quer, porém não consegue, comprar um carro e como a colega do escritório melhorou de vida ao encontrar senhor Jesus, cogita se não é um encosto que lhe impede de ter um automotivo.
- Improvável, comenta o diabo com um sorriso apiedado.
Reluta diante da conversão porque usar cabelão e parecer espantalho é um sacrifício muito grande para a sua vaidade. Uma boa pessoa, mas acho que a vejo assim por causa de meu amigo...
- Ela será minha essa noite.
Dito isso, abraçou-me, botou o chapéu e saiu. <>

À noite, saudoso de meu inquilino, fui para o sótão e tomei sorvete de chocolate, observando a vista do belo bairro que eu conhecia e que ia desaparecendo à medida que brotavam do chão esses brancos prédios residenciais, feito cogumelos em terra fértil depois da chuva. É claro que eu não podia me esquivar de apreciar a vizinha, pois a dita adorada morava logo a frente.
Seu apartamento estava escuro, já era tarde e ela foi dormir. De repente... Parei. Levantei. Atentei. Alguma coisa aconteceu...
O vidro das janelas. Ele embaçou. Uma condensação típica de frio. Vi algo. Percebo ela...
O corpo roliço dela. Meio metro sobre a cama. Flutuando nu. A gordinha dorme em transe. Segurei a colher de sorvete. Não resisto!
As cortinas se fecham por uma mão invisível e eu rio em solidariedade ao meu amigo demoníaco.



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